
Primeira parte – Anedotas sem graça
Eu sou um homem frustrado com a própria vida. Sou da geração que cresceu escutando que a gente iria mudar o mundo*. Que nós éramos a geração da tecnologia, que cabia a nós transformar o mundo num lugar melhor. Que nós tínhamos todas as oportunidades que nossos antecessores não tiveram. Que o mundo estava ao nosso alcance e que bastava querer para tornar nossos sonhos em realidade.
- Já falei sobre isso em meu artigo “A Falácia sobre a Educação“.
Acontece que os sonhos são a primeira coisa que morre quando crescemos, isto é, quando nos tornamos adultos. Não me tornei nada daquilo que um dia sonhei. Não segui nenhuma carreira que um dia almejei. Não me tornei um cientista, nem professor de filosofia, nem artista marcial, nem atleta, nem empreendedor. Porém, de todos os sonhos que morreram, apenas um me deixa grato por não o ter alcançado. Quanto a este ”livramento”, sou sim absolutamente grato à vida: eu não segui carreira militar.
Desde quando eu era bem pequeno, pequeno mesmo, eu admirava o militarismo. Sempre me interessei pelo assunto. A história e a evolução das armas, as artes marciais orientais e européias, a formação dos exércitos… As histórias das grandes batalhas, dos feitos heróicos… Da história antiga às contemporâneas armas de fogo, praticamente todos os meus cursos de extensão são voltados ao assunto*.
*Já falei sobre isso em meu texto ”Todos os ateus são pessoas más?”
Meu fascínio (e ingenuidade) quanto ao assunto me levou a um curioso histórico pessoal para tentar ingressar na carreira militar. Na infância, não pude entrar no Colégio Militar, pois era muito jovem. Eu sempre fui um ano adiantado na escola, então teria que perder um ano para ingressar. Para não perder um ano inteiro de estudo, deixamos o ingresso para o Segundo Grau (que depois se chamaria Ensino Médio).
Para o Ensino Médio, tive de fazer uma prova na qual tirei a pior nota de minha vida (3). A prova de matemática era praticamente toda sobre Função. Só que Função é matéria do primeiro ano (a série para a qual eu estava tentando ingresso)! Ó raios, como vão me cobrar na prova uma matéria dada para a série a que estou postulando cursar? Para quê eu vou entrar numa escola já sabendo a matéria que vão ensinar?
Já ali eu comecei a sentir que havia algo de errado…
Após o Ensino Médio, tive a oportunidade de tentar a EsPCEx ou a EPCAr. Sem interesse pela carreira do Exército, mas interessado pela carreira na Aeronáutica, fui ver os editais. Meramente a asma e as alergias eram suficientes para desqualificar. Nem perdi tempo tentando. Mas o que me chamou a atenção foi o fato de que também desqualificava ter dentes que precisariam de tratamento ortodôntico. Sim, ter dente torto te desqualifica(va) para o ingresso no oficialato.
Quanto à história dos meus dentes e meus traumas: “Quebrei meu dente comendo pão“.
Tendo sido rejeitado 3 ou 4 vezes, aos 17 fiz vestibular para Direito e minha vida seguiu outro caminho, no qual os estudos sobre o militarismo continuariam sendo apenas teóricos. Assim, em meu aniversário de 18 anos, fui me alistar. Saio de casa de madrugada, pego ônibus, chego e a fila já estava crescendo. Chegada minha vez a (cof-cof, não devo xingar) ”senhora” responsável pelo serviço me mandou voltar para casa, porque a camisa que eu estava usando era de ”gola careca” e não iria me atender. Retorno para casa, pego uma camisa que não era minha (três vezes meu tamanho; a única disponível), e parecendo um saco vazio retorno lá. Enfrento a fila de novo, desta vez enorme, para ela preencher o protocolo, zombar do meu aniversário e reclamar quando usei o balcão para separar a passagem de ônibus de volta…
Os detalhes dessa história têm mais de vinte anos, então muito se perdeu da memória. O que recordo é que deu problema por eu estar cursando a faculdade (lembra, eu entrei com 17). Fui umas 4 ou 5 vezes para quartéis diferentes, tive de lidar com um monte de recrutados sem noção, as instalações eram ruins, uma bagunça danada. As coisas que ficaram na memória foram:
1 – Minha cabeça era a maior do quartel. 59cm de coco. Não tinha capacete do tamanho do meu quengo e eu podia ser dispensado por isso.
2 – Eu era o único alistado que tinha todos os dentes na boca. E sem cáries.
3 – Um monte de adolescentes amontoados num quartinho tendo que ficar pulando seminus e depois mostrar o saco para o médico local ver se tinham as duas bolas.
4 – E no final, quando viram meu currículo e exame de QI, o último médico finalmente perguntou:
“—Você está fazendo faculdade?”
“—Sim, Direito na UFRJ.”
“—Você quer servir?”
“—Não, não quero, quero ser advogado.”
“—Ah, tudo bem, então vou te dispensar.”
Depois dessa aventura, me perguntaram:
“Mas você queria tanto entrar, por que disse não?”
“Porque eu também tenho meus brios. Fui negado tantas vezes que agora quem não quer sou eu.”
Não tive mais contato com as forças armadas, apenas mantive em mente a imagem de uma bonita carreira de pessoas bem vocacionadas que serviam ao seu país. Imagem essa que ainda, infelizmente, insiste em habitar o ideário popular.
Alguns amigos meus não tiveram tanta sorte. Por algum motivo, o Brasil ainda segue a idéia da ”obrigação de sangue”. O serviço militar é obrigatório para todos os homens. Diferentemente de lugares mais civilizados, como nos EUA ou na República Democrática do Congo, onde você voluntariamente assina um contrato com seu país, aqui é na marra mesmo. Você pode, por lei, ser obrigado a trabalhar contra sua vontade, fazendo um serviço que não quer fazer e ser punido se se recusar a fazê-lo. Também conhecido como Escravidão. Mas como se trata do contexto militar, ganha o nome mais ameno de Conscrição.
Durante uma amistosa conversa entre aulas da faculdade, surgiu o tema do alistamento. Não esqueço a fisionomia jocosamente tristonha de meu amigo (G) quando falou sobre sua desagradável experiência: “Eles me pegaram, Pedrinho!“, referindo-se a não ter escapado do serviço obrigatório. Além de ser algo que ninguém que tenha qualquer aspiração na vida queira fazer, o “trabalho” propriamente dito consiste em acatar ordens inúteis, muitas vezes desconexas, vindas de indivíduos com duvidosa competência. Todas se referindo ou a um treinamento físico impróprio ou à manutenção das instalações militares.
Outro amigo (V) também me contou sobre suas experiências. Ele teve o privilégio de dar tiro de boca durante o Tiro de Guerra. Sim, leitor, nossos soldados são treinados com munição imaginária. Basta falar “Pou! Pou! Pou!“. Se isso não fosse estranho o suficiente, saiba que ao final o instrutor ainda lhe dizia “Aos alvos conferir marcas.“. E ele (com os demais recrutas) tinha que ir andando até o alvo conferir se o disparo imaginário o havia acertado. Todos acertavam na mosca. Não acredita? Pois veja o vídeo abaixo que demonstra tal prática ainda ser aplicada.
Embora todos esses relatos anedóticos sejam muito comuns e amplamente conhecidos pela população em geral, ainda havia, ao menos até 2022, a sensação geral de que o lema “Braço Forte, Mão Amiga” não era apenas um lema, mas também uma verdade incontestável. De que, apesar de todas as dificuldades orçamentárias, de todos os contratempos e obstáculos, nossos soldados estariam sempre prontos e dispostos a proteger e ajudar a população nos momentos mais difíceis.
O orgulho de fazer parte das Forças Armadas, a honra, a tradição e, sobretudo, o prestígio de servir à pátria e ao povo ainda eram um véu que recobria o nome e o renome da última instituição em que o brasileiro médio (de direita) confiava e tratava com reverência. Hoje, ser soldado tornou-se motivo de chacota, como em minha postagem: “A imagem do despreparo das forças armadas no Brasil“.
Mas o mal-estar não mais se limita apenas ao evidente absoluto despreparo das forças para agir em situações de emergência ou comoção social. A consternação com a pífia atuação nesses casos se somou com a frustração de uma população que inocentemente acreditou que as forças estariam ali para lhe proteger de um governo corrupto. Agora as Forças Armadas são vistas não só como incompetentes, mas também como traidoras.

Bem, as Forças Armadas não traíram ninguém. O povo fantasiou que seria resgatado pelo Exército, mas se esqueceu de perguntar ao Exército se ele viria mesmo lhe salvar. Está bem claro no artigo 142 da CF88 que as forças existem para manter a ordem constituída, não para subvertê-la. Exército não é babá de civil. Se a população civil está insatisfeita com o governo, que resolva nas eleições. A maioria votou no Lula, então agüentem. Essa posição corporativista das forças já era denunciada por Olavo de Carvalho há décadas, mas foi necessária a traição de Bolsonaro para finalmente iniciar o processo de despertar da população, ou ao menos de parte dela. Veremos isso na segunda parte do texto. Por hora, assista ao vídeo abaixo.
A Decadência do Exército Brasileiro | Abraham
Cópia de segurança em meu repositório caso o vídeo esteja indisponível:
https://www.bitchute.com/video/vbhREyUpuNWt
Segunda parte – Um general patético.

Eu comentei a queda de Bolsonaro no texto O que ocasionou a derrota de Jair Bolsonaro?, e citei as traições dele no texto “As conseqüências políticas do analfabetismo funcional do brasileiro“. Mas agora que sua máscara caiu, que está prestes a ser preso, está se revelando algo muito pior do que um traidor. Quer colocar a culpa nos próprios apoiadores que foram às portas dos quartéis pedir por intervenção militar. Mas quem os instigou a isso? Quem durante todo um governo associou sua própria imagem às Forças Armadas? Quem usurpou para si a imagem de chefe de um exército que estaria ali para proteger a população de bem? E que estava “contra os comunistas”? O sujeito arquitetou uma lavagem cerebral em massa, uma histeria coletiva de pessoas ignorantes e facilmente manipuláveis. Queria sim que houvesse alguma intervenção, mas não teve colhões para fazê-la ele mesmo. Quando o frágil castelo de cartas ruiu, como o covarde que é, pôs a culpa em seus seguidores.
É óbvio que ele merece ser preso não só por tudo o que se omitiu em fazer, mas também pelos atos abjetos que cometeu. Omissões foram várias. Ele sabia da fome e da doença dos índios, mas não fez nada: índio não vota. Ele protegeu os garimpeiros: garimpeiro vota. Ele deixou que proto-ditadores fizessem e desfizessem durante a Peste Chinesa, quando tinha o poder-dever de intervir. Prevaricou. Ele deixou que todos os seus apoiadores fossem perseguidos, assim, a imagem da direita no Brasil teria apenas o sobrenome de seu clã. Todos os que rompem apoio, ou meramente criticam o imbrochável líder, são alcunhados como “traidores”, são ostracizados, têm suas reputações assassinadas.
Mas muitos estão começando a perceber quem ele realmente é. Cada declaração em que tenta se eximir da responsabilidade pelo que aconteceu a tantos cidadãos presos no 8 de janeiro o faz perder mais e mais apoiadores. Cada evasiva faz muitos questionarem o apoio até então dado. Até Romário, figurinha da politicagem fluminense começou a se afastar dele. Outros nomes também começam a se afastar, antevendo sua prisão e calculando o custo-benefício de manterem-se ligados a alguém cujas manifestações em apoio vêm se tornando cada vez mais esvaziadas. Sim, ele ainda possui um enorme número de apoiadores. Mas quanto tempo isso durará?
Haverá quem, mesmo após tudo isso, continuará apoiando o sujeito. O comportamento canastrão e cafajeste de Bolsonaro conquistou a população. O povo é mulher e, por mais que mulher diga que gosta do homem certinho e não queira admitir, ela gosta mesmo é do cafajeste. O ”moreno tatuado com cara de bandido” se personifica politicamente na figura dele mesmo. Falas conhecidas como “Vagabundo tem mais é que se foder, porra! Acabou!” agradaram a população há anos vítima da impune violência criminosa. Ele deu voz a um povo cansado de uma política de velhos velhacos e novos hipócritas. Parecia ser alguém genuinamente contrário ao sistema. Cativou, seduziu, hipnotizou e iludiu um povo carente de homens fortes e de valor. Esse povo então lhe entregou toda a esperança há tanto tempo reprimida. Sem outras referências, aceitaram aquilo como ”o salvador da pátria”. Era o que aquela gente tinha para enfrentar o lulopetismo. Toda a libertinagem de tal cafetão político precisaria ser relevada. Incluindo promiscuir Religião, Política e Defesa Militar.
“Defensor dos valores cristãos” com 5 filhos em 3 casamentos diferentes, o homem que afirmou “pintar um clima” com jovens pobres enquanto sabia dos horrores de Marajó não foi de todo um tolo. Ele sabia que caso aparecesse outra pessoa mais competente (o que não é difícil) nos assim incipientes movimentos de direita, ele não manteria o poder para si ou para outro de seu clã. Permitiu que aliados fossem perseguidos, deu as costas a apoiadores em seus momentos de necessidade. Concentrou em si, e somente em si, o nome viável da direita para eleições. “Não há direita no Brasil sem Bolsonaro“, ele mesmo disse. Fez de propósito. Foi planejado. Porém isso apenas não seria suficiente. Era necessário também conquistar a massa popular de forma ainda mais profunda, no que ela tem de mais precioso, que é sua fé.
Pastores evangélicos transformaram as pregações onde se deveria elevar o coração ao alto em comícios eleitoreiros. Falsos profetas profetizaram “em nome de Jesus” que ele venceria as eleições. Senhorinhas com a bíblia em mão clamavam por ajuda aos céus para que o comunismo não se implantasse no Brasil. Bolsonaro foi salvo de uma facada por um milagre de deus, logo, seria esse “ungido do senhor” o defensor da cristandade. Católicos (cujo dogma excomunga o comunista) e protestantes oravam para que ele permanecesse no poder. Encararam todas as questões mal respondidas que ocorreram durante o processo eleitoral de 2022 como uma prova de fé.
Não satisfeito em promiscuir fé e eleições, botou durante seu governo a já convalescente reputação das Forças Armadas no meio do caldeirão de sentimentos de uma população extasiada. Entre motociatas e tanqueciatas, “Vocês vão à frente, eu vou depois e, atrás, o meu Exército.” Atiçou a população por meses, instigou a exacerbação dos ânimos, para depois esconder-se como um covarde, sem dar ao povo que nele confiou qualquer palavra de alento diante da derrota.
Crédulos de que “as Forças Armadas iriam combater o Comunismo no Brasil”, patriotários foram às frentes dos quartéis rogar, implorar por ajuda. O fervor político e religioso tomou conta de milhares de pessoas. Alguns chegaram ao ridículo de esperar por intervenção alienígena. (Algo que muito agradaria este que vos escreve — eu adoro essas coisas de Operação Prato, Varginha e o OVNI de Macaé). E enquanto o povo aterrorizado com a possibilidade de este país se tornar uma ditadura comunista chorava clamando por socorro aos militares, postando em suas redes sociais que “Eu Autorizo”, num claro descontentamento em relação à dubiedade da lisura das eleições, seu Capitão General fugia para a Disney enquanto fazia seus eleitores de Patetas.

Mas essa experiência não foi de todo ruim (para quem não está preso ou morreu na cadeia). O povo finalmente viu que as Forças Armadas não irão protegê-lo. Nem do governo a que fazem parte, nem de catástrofes naturais, como as enchentes no Sul ou a ganância privada no Norte (refiro-me tanto a Maceió, que está afundando por minas subterrâneas, quanto aos índios morrendo pelas ações dos garimpeiros). E, convenhamos, nem de ameaças externas. Se o Zimbábue resolver atacar, eles chegam a Brasília antes de os recrutas terminarem de treinar tiro de boca.
É muito fácil mandar os filhos dos outros para um árduo trabalho estando no conforto de um escritório. É muito fácil discutir os cortes das rações durante um jantar com talheres de prata. É muito fácil deixar seus eleitores adoecerem na porta de quartéis, ou morrerem em celas de presídios. Eu repito o que disse no outro texto: nossos meninos não merecem isso. Quem vai agora querer genuinamente servir como praça, sabendo como é a realidade das forças no Brasil? Se antes, com a imagem preservada, já se falava tão mal do serviço militar obrigatório, agora que o comportamento e a posição política dos comandantes está sob escrutínio popular, quem quererá se submeter a essa hierarquia? Que jovem aceitará agora se tornar motivo de zombaria? Três dos meninos morreram aqui no Rio de Janeiro durante uma GLO por fogo de narcotraficantes. Este ano, um se suicidou no quartel. Quem quererá isso para si? Ou, para seu próprio filho?
Credibilidade é algo que só se perde uma vez. A ilibada reputação das Forças Armadas acabou para parte considerável da população. Seja dos generais que prestam continência a ditadores, seja dos seus civis comandantes-em-chefe. Uns os chamam de inúteis, outros, de traidores, tal como o ex-presidente (futuro presidiário). O inelegível conseguiu unir direita e esquerda em repúdio ao Exército. O Lula, ex-presidiário (agora presidente) pode ter todos os defeitos que o Bolsonaro disse, mas pelo menos não se apóia na imagem nem no prestígio de outrem para se promover. Nem do exército, nem de Jesus.
Ainda bem que eu não servi. Não faço parte dessa bagunça. Essa é uma frustração que não carrego.

Terceira parte – kalos thanatos
Glossário:
* eugenia – espartanos eram inspecionados após o nascimento; se houvesse qualquer problema de saúde com o bebê, ele seria morto. Isso garantia que apenas homens saudáveis integrassem o corpo social.
* culto – espartanos eram fervorosamente religiosos, cultuando principalmente deidades femininas. Atena era a mais cultuada.
* Licurgo – legislador e reformador lendário a quem se atribui a lei espartana.
* agoge – um dos primeiros períodos pedagógicos ao qual os meninos iniciavam a vida militar.
* kalos thanatos – literalmente “a bela morte”, refere-se à morte em combate, ou seja, dar sua vida pelo Estado.
* formação hoplita – falanges de soldados que se defendiam mutualmente por meio dos hoplons, largos escudos que vieram a se tornar o símbolo militar espartano.
* polis – Cidade-Estado grega. Na Grécia, cada cidade era seu próprio minipaís, com suas próprias leis.
Embora a sociedade ateniense tenha deixado muitas obras para a posteridade, e por ela seja conhecido o cotidiano do mundo grego, foi a sociedade espartana que melhor vivenciou o espírito helênico. A eugenia, o culto, o senso de camaradagem e a vida militar.
Graças às reformas pedagógicas de Licurgo, todo homem espartano era um escravo. Seja um escravo no sentido literal, um estrangeiro derrotado na guerra; seja um escravo do dever à polis. Esses homens livres, porém inatamente servos ao corpo social, vivenciavam desde o agoge até o kalos thanatos os valores da sociedade grega antiga. Em nenhuma outra cidade as mulheres foram tratadas com tamanha igualdade. Também treinavam para a guerra nuas nos ginásios junto aos homens. A elas cabiam os serviços auxiliares e o ataque à distância, enquanto aos homens cabia a formação hoplita.
Todo espartano era estritamente um soldado e somente aos soldados eram reconhecidos direitos políticos. Como alguém que não vive para morrer pelo Estado teria o direito de participar das decisões públicas? A esses que viviam em esparta, mas não eram espartanos natos, eram reservados todos os demais serviços. Agricultura, manufatura, mineração, comércio. Para mantê-los sob controle e medo constantes, eram duramente explorados.
Espartanos não deixaram obras filosóficas ou culturais. Estavam totalmente dedicados ao serviço militar e à guerra. Esse exemplo histórico serviria para a construção do mito do soldado perfeito, inspiraria poemas e prosas para as gerações vindouras sobre uma romantizada vida aquartelada.
Posteriormente, os romanos encontraram um meio termo entre a excessiva obsessão espartana e a indolente displicência brasileira. Soldados provinham soldos e terras após o serviço militar. Servir às forças armadas era interessante ao soldado, apesar da obrigatoriedade e do grande perigo envolvido. Havia uma doutrina militar racional e regras bem claras. O exército romano não se reservava apenas à guerra, mas atuava em todas as necessidades públicas. Calamidades, agricultura, construções. Participavam ativamente de todas as questões sociais. Sendo nossa sociedade descendente daquela, esse ideário milenar da função do exército se manteve até recentemente.
Séculos mais tarde, no oriente, mongóis criaram o maior império em extensão territorial contínua da história por também se dedicarem mais às batalhas do que à pacífica vida ”civil” (eles não tinham cidades). Aqueles nômades viviam sobre seus cavalos. Enquanto a vida agrária dos conquistados lhes engordava, tirava suas forças e estragava seus dentes com os cereais, os mongóis, alimentados exclusivamente com carne, queijos e iogurte, eram magros, fortes e cheios de energia. A história demonstrava mais uma vez a preponderância da força militar ativa sobre a pacificidade civil passiva.
Já no ocidente, após gerações de opressão muçulmana, cristãos europeus finalmente se rebelaram contra os invasores e partiram nas Cruzadas. As guerras sempre tiveram ao longo da história uma faceta religiosa. Soldados sempre oraram ao divino por proteção. Mas, com as Cruzadas, a guerra assumiu efetivamente essa face, sem véus, máscaras, escusas ou dissimulação. Matar o inimigo em nome de Deus lhe concederia a indulgência da Igreja, um salvo-conduto para o paraíso. Afinal, era isso ou morrer nas mãos dos muçulmanos, que estavam fazendo a mesma coisa.
Desde então, Jesus Cristo sempre foi invocado durante as guerras. Joana D’Arc morreu afeita à sua fé. Católicos e protestantes se mataram (literalmente) para decidir quem amava mais Jesus. Mesmo Napoleão, que recusou que sua coroa de imperador fosse-lhe imposta pelo Papa, já dizia que Deus estava sempre ao lado dos grandes exércitos. Quanto maior, mais Deus favoreceria. Claro: uma guerra tradicional é uma questão de números. Quanto maior for o batalhão, maior é a chance de vitória. E aos vencedores cabem escrever a história e a graça de Deus.
“Gott mint uns” (Deus está entre nós) era o lema inscrito nas fivelas dos cintos de todos os soldados durante a Alemanha Nacional Socialista. Exterminar os descendentes dos que mataram Jesus, que criaram o Comunismo, que se recusavam a integrar a sociedade cristã, responsáveis pela crise econômica, e com a bênção papal de Pio XII era uma tarefa nobre para o pobre católico soldado alemão.
No Brasil do início do século XX, o temor ao comunismo começava. Pela primeira vez as Forças Armadas Brasileiras intervieram e os impediram, iniciando aí a reputação de serem contrárias à esquerda política. Depois nossos pracinhas foram ao estrangeiro, os enfrentaram e voltaram com a glória inerente a uma Grande Guerra, de terem enfrentado tiranos de esquerda e os vencido. Vargas precisou deixar seu cargo de ditador, mas o povo, que é mulher, pediu por ele de volta. Passado um tempo, durante a Guerra Fria, a ameaça comunista retornava e, mais uma vez, as Forças Armadas intervieram e os impediram, dando início ao Regime Militar.
Se haveria ou não a tentativa de implantação de um regime de esquerda, ninguém sabe ao certo. Mas a desculpa foi essa. E mais uma vez se fortalecia o conceito de que o Exército Brasileiro era de direita e seria anticomunista. Passados 50 anos, um certo crápula aproveitou-se do cenário perfeito (paranóia de uma nova ameaça comunista, formação de incipientes movimentos de direita, advento de redes sociais e o imaginário popular que via o Exército como cristão e anticomunista) para eleger-se e então trair a nação, tentando perpetuar-se no poder.
Hoje as Forças Armadas perderam sua reputação. Não são vistas mais como defensoras de um povo e sua fé. O serviço não é visto romanamente como algo nobre em favor do corpo social. Dele não surgirá o “salvator patriae“, aquele que evitará a ruína do Estado. Também, definitivamente, não existe o kalos thanatos no Brasil. (Quem vai querer morrer por isto aqui?) O jeitinho brasileiro chegou à caserna. A Lei de Gérson vale tanto quanto a Constituição para o oficialato e suas filhas, que vivem amigadas para não perder a pensão de papai (que não morreu em serviço). A frustração de um povo ao finalmente despertar e perceber que ninguém irá lhe proteger é sentida como uma traição. E ironicamente (ou não) testemunhamos gado com dor de corno.
Uma anedota: ao pronunciar seu juramento em juízo, o romano segurava seus testículos com a mão direita (munheca). Daí o nome ”testemunho”. Mas neste país de homens sem colhões, liderados por canalhas, as bolas só servem para passar vergonha durante o exame físico do alistamento. E a fantasia da valorosa vida militar morre para o povo brasileiro, tal como morrem os sonhos de uma criança quando se torna um adulto.







