
Prefácio
Cartórios são uma peculiaridade sui generis na nossa sociedade. Eles têm fé pública, mas operam como estabelecimentos privados. O tabelião faz concurso, mas assume com caução. Se o cartório der lucro, é dele. Se der prejuízo, ele paga. Ele segue um monte de normativos, mas tem discricionariedade para trabalhar. Está na constituição: os serviços são exercidos em caráter privado por delegação pública. E como você precisa de cartório para fazer qualquer coisa importante, não tem como escapar deles.
Nem o tabelião nem os escreventes têm culpa. Regra é regra, risco é risco, negócio é negócio, e cada negociante negocia seu negócio conforme as negociações negociadas. Mas a regra desse jogo só favorece um lado. Quando nós dependemos do serviço cartorário para fazer alguma coisa, somos obrigados a seguir as regras que lhes são impostas. Embora trabalhem privadamente, são submetidos ao burocrático, arcaico e insano regime de normas públicas.
O serviço cartorário pode ser visto como a verdadeira institucionalização do ”sistema”, a legalização do ”dificultamento”, a legitimação do ”empecilhamento”, a gestação do ”despachamento”, a burocratização do ”sofrimento”. E nesse sofrível ambiente de negócios brasileiro, para fazer uma ação pública, você é obrigado a contratar um serviço privado. O governo tira o dele da reta 1 , põe o do tabelião no lugar e quem paga os emolumentos é você. O termo técnico para isso é ”cambalacho”, um esquema cuja vantagem é só do governo.
Se der qualquer problema, o tabelião responde pessoalmente. Afinal, ele é o responsável pela documentação que passa no cartório. É o risco assumido. Por isso mesmo, o sujeito tem que se garantir. Seu serviço é trabalhar todo dia com o cagaço de tomar uma volta num país infestado de salafrários. E já que a lei diz que os justos pagam pelos pecadores, você, usuário, que se vire para atender as exigências.
Esta é a saga de um suburbano carioca lidando com cartórios.
Da aventura
Então depois de muita perseverança em juntar seu rico dinheirinho, contra a realidade econômica brasileira, as despesas domésticas e a famigerada carga tributária, é chegado o tempo de comprar um imóvel. Apreensivo quanto aos documentos, contrariando o receio de ter alguma coisa errada ou de algo não dar certo, você aposta no seu anjo da guarda, respira fundo e vai em frente.
No banco, você faz um cheque-administrativo, um pedaço de papel que vale uma nota firme. Se você perdê-lo, já era. Lascou-se que dá gosto. Ainda assim é mais fácil do que sair do banco com um monte de dinheiro enfiado nas ceroulas, tal como o senador Xico Fiofó, e adquirir sua futura morada com dinheiro fedido. E sai feliz do banco com a conta encerrada, porque já não tem mais nem um tostão furado para manter a conta aberta e banco não gosta de pobre…
Assim começa esta aventura cartorária.
Marcamos a data no cartório A para fazer a assinatura da escritura. Obviamente com medo de perder o tal cheque-administrativo, vamos de carro. Lá chegando, aguardamos os vendedores, batemos papo, apresentamos a guia de recolhimento de imposto (sim, porque antes do pagamento, você precisa pagar a taxa para pagamento, ou como chamo: ”extorsão governamental”). Finalmente, é necessário o pagamento pelo serviço cartorário em seu custo exorbitantemente tabelado com desconto.
— Aceita cartão de crédito? [parcelar seria uma boa…]
— Não, só à vista.
— Tudo bem. Aceita cartão de débito? [já sentindo a facada]
— A máquina está com defeito.
E lá vou eu, no meio da pandemia, à caça de uma agência bancária que estivesse aberta; e que tivesse guichê de caixa funcionando; e que aceitasse sacar o exorbitantemente tabelado com desconto valor do serviço cartorário.
Como sabemos, Rio de Janeiro e saidinha de banco rimam muito bem. Você sai do banco olhando para todos os lados, andando o mais rápido que pode sem chamar atenção, desviando de cracudos e de carros, com cuidado se não sai vagabundo do bueiro ou cai do poste. Daí paga a escrivã, que feliz receberá sua comissão.
— E a escritura? [afinal foram duas boladas, a extorsão do governo e o serviço do cartório]
— Ah, o tabelião vai conferir e em alguns dias pode voltar para pegar.
— Hã… E… Eu levo alguma coisa?
— Você leva este protocolo.
E recebo o recibo de que receberam os documentos e de que tudo foi pago.
Com toda sinceridade, quando eu vi que o papel é um recibo comum, e que ele não tem referência nenhuma do teor da escritura, eu respirei fundo e pensei no anjo da guarda: ”não me desampare agora”. E saio do cartório querendo voltar direto para casa e respirar ainda mais fundo, mas minha mãe resolve fazer sala para os vendedores e ir tomar um café. Putz.
Retorno para casa, delego tudo ao anjinho, voltamos lá uma semana depois e pegamos a escritura. Eba! Deu certo! Só tem um detalhe: a compra de um imóvel é feita em duas partes, tal como a de um carro. Quando você compra um carro, você tem a nota fiscal da compra, isto é, comprovante que você pagou pelo carro; e tem o RENAVAM, que é o registro do carro, isto é, o comprovante que o carro pertence a você.
O mesmo se dá com a compra de um imóvel. A escritura comprova o pagamento, mas só é dono quem registra. No mesmo dia em que recebemos a escritura, vamos ao cartório B para fazer o registro da dita cuja.
— Olá, por favor, como devemos fazer para registrar a compra de um imóvel?
— Vocês precisam trazer essa lista de documentos, preencher esses formulários e pagar pelo serviço.
— Podemos dar entrada com a escritura?
— Não, só com todos os documentos.
— E o preço?
— [Custo exorbitantemente tabelado sem desconto]
E saímos cabisbaixos, pois não tínhamos todos os documentos. Confiante, providenciei tudo e mais um pouco (ao menos o que dava para tirar pela internet). Certidões, cópias, comprovantes do governo etc. E retornamos para deixar os documentos.
— É necessário autenticar cópia da identidade.
— Vocês não fazem aqui?
— Não, aqui é só registro. Precisam ir a outro cartório.
E fomos ao cartório C para fazer a autenticação.
— Vocês autenticam cópia aqui?
— Não aqui só fazemos certidões. Nascimento, casamento e óbito.
[Ué? Eles dão o documento de que a pessoa nasceu, casou e morreu, mas não conferem cópia?]
— E onde tem?
— Tem naquele cartório mais longe.
E fomos ao cartório D, um pouco mais longe.
— Vocês autenticam cópia de identidade aqui?
— Sim, fazemos.
— Que bom!

E voltamos ao cartório B com a cópia autenticada da identidade, embora todos os dados já estejam na escritura e não haja qualquer motivo razoável para exigir autenticação novamente desse documento. Lá vou eu, todo todo, crente que estou abafando, com uma pilha de documentos para fazer o registro.
— Agora falta a cópia autenticada da guia de pagamento do imposto.
— Perdão, mas aqui eu trouxe o comprovante de recolhimento de imposto.
— Mas esta cópia da guia não está autenticada. O cartório A deveria ter lhe dado.
— Creio que não me entendeu: este é o comprovante de recolhimento de imposto. Ele comprova que a guia foi paga. Para quê pedir a cópia autenticada do boleto de cobrança, se eu trouxe o comprovante emitido pelo governo dizendo que o imposto foi pago?
— Tudo bem, eu vou dar entrada assim mesmo. Por favor, pagar o custo exorbitantemente tabelado sem desconto. O processo leva um mês, mas pode ligar em 15 dias.
Até parece que eu vou tentar resolver essas coisas pelo telefone! Em dez dias lá estou eu de novo no cartório B para saber como está o processo.
— Está com pendência de documentos.
— O que faltou?
— Faltou citar declarações no corpo da escritura. Precisa recolher as assinaturas da vendedora e da compradora nestas declarações. [me forneceu as declarações] Também está pedindo o título aquisitivo da vendedora. E pagar novos emolumentos.
[Título aquisitivo da vendedora? Eu não tenho como arrumar isso! Mas tudo bem, a escritura dela foi registrada neste mesmo cartório B, então deve ser só praxe deles…]
— E qual será o novo custo?
— Só podemos ver na hora.
Saindo do cartório pensei comigo mesmo: mas espere um pouco… E se eu não tivesse contato com os vendedores? E se tivessem falecido? E se tivessem viajado? Se faltou algo, o erro foi no cartório A… Mas isso não importa. Minha amiga Mirian ensinou-me que, quando se lida com serviços públicos, é igual exercício ”para casa” de uma criança na escolinha: ”dê o que se pede”. E lá fui eu entrar em contato com os vendedores, bater a declaração no computador (porque a fotocópia que recebi do cartório B estava inviável), enviar a declaração por e-mail e depender da boa vontade deles (que ainda tiveram a gentileza de autenticar a firma em cartório). Documento da vendedora pronto, falta da parte compradora.
E vamos ao cartório D para reconhecer a firma.
— Olá, viemos reconhecer firma.
— Você tem firma aberta aqui?
— Não, não tenho. É só para conferir com minha identidade.
— Só reconhecemos assinatura se abrir firma.
— Tudo bem, então. [mais um serviço para pagar…] Aqui está a identidade.
— Essa identidade é muito antiga, não posso fazer com ela.
— Mas a assinatura é a mesma!
— Mas eu não posso usar uma identidade tão antiga.
[daí baixa o filósofo]
— Mas o reconhecimento de firma é feito por conferência grafoscópica ao contrapor a assinatura do documento base à assinatura a ser aferida. Se a assinatura é a mesma, a autenticidade é avalizada.
— Mas não é só a assinatura, também é a minha discricionariedade. [enfaticamente] Eu não a reconheço nessa foto.
[Percebo então que ela não queria fazer.]
— Perdão, mas nós já estivemos aqui e foi feita a autenticação da cópia deste mesmo documento. Como pode autenticar a cópia de um documento, mas não pode reconhecer a firma dele?
— Sinto muito, mas não vamos poder estar atendendo a sua solicitação…
— Onde então podemos fazer? [percebendo que ali era perda de tempo e que não ia rolar]
— Têm firma aberta em algum lugar?
— Tinha no cartório próximo daqui que fechou. Ele foi para bem mais longe.
— Vocês podem tentar fazer lá.
E fomos ao cartório E, beeem mais longe.
— Só pode entrar um por vez. Restrição por conta da pandemia.
[eu vendo que tinha gente entrando de dois ou três]
— Tudo bem, eu espero do lado de fora.
[minutos mais tarde, lá dentro uma muvuca só]
— Do que se trata?
— Pedro! [e lá vou eu resolver o assunto]
O funcionário muito atencioso não abriu firma, não procurou a firma antiga, não criou problema, e em dois tempos fez a conferência, só pedindo para se assinar um registro. Resolvido em menos de 10 minutos por um funcionário de boa vontade e bom humor.
E voltamos ao cartório B.
— Aqui estão as declarações solicitadas.
— Agora falta o título aquisitivo da vendedora.
— Mas nós não temos isso!
— Não dá para fazer sem esse documento.
— Mas está registrado aqui!
— Precisamos desse documento para prosseguir.
— Precisa que seja original, autenticada… [?]
— Não. Basta cópia simples.
Já desiludido e enfadado, sem ter onde enfiar a cara, novamente dependendo da boa vontade de pessoas que não têm nada a ver com o problema, contacto novamente os vendedores e lhes explico a situação. Mais uma vez têm a gentileza de procurar em sua antiga documentação a escritura de aquisição, de mais de 20 anos passados.
E voltamos ao cartório B.
— Aqui está a cópia solicitada da escritura.
— Mas ainda está em pendência. Faltam as declarações da vendedora e da compradora.
— Não, não, não. Estão aí. Eu trouxe semana passada, elas têm que estar aí!
[procurando no bolo de documentos]
— Estão aqui sim. Agora é só pagar os emolumentos e aguardar mais dez dias.
Dez dias depois, voltamos ao cartório B.
— Olá, vim ver como está o processo de registro.
— Caiu em pendência de novo.
— O que faltou agora?
— Falta informação no título aquisitivo da vendedora. Não consta o estado civil dela quando adquiriu o imóvel.
— E agora, o que faço?
— Precisa retificar a escritura da vendedora para dar prosseguimento.
— Mas essa escritura dela já está registrada aqui! Neste cartório mesmo!
[percebendo a situação absurda em que nos encontrávamos]
— Por favor, fale com a conferente…
[com a conferente]
— Boa tarde, é sobre o processo de registro desse imóvel…
— Ao fazer a análise do documento, está faltando informação na escritura da vendedora de quando ela adquiriu o imóvel. Falta o estado civil dela. Não podemos fazer sem esse dado. Por favor, precisa ou falar com ela ou o senhor mesmo ir até o cartório F. Lá eles precisam ter a documentação. Eles fazem o aditamento gratuitamente. Para fazer aqui, precisa pagar pelo serviço e trazer as certidões.
— Tudo bem.
E saímos do cartório B.
Sem querer acreditar no que havia ouvido, pondero sobre a situação.
E vamos ao cartório F.
— Olá, bom dia. O assunto é o seguinte… [explico a inusitada situação em que nos encontramos].
[E o escrevente Filipe, numa paciência de Jó e toda boa vontade do mundo, tenta nos ajudar de toda sorte.
E liga para tabelião, e telefona para cá, e telefona para lá, e sobe e desce escada. E responde:]
— Infelizmente essa documentação já tem mais de 20 anos e todos esses documentos já foram incinerados. Não podemos fazer o aditamento sem ter documentação comprobatória. Precisa entrar em contato com os vendedores para pedir as certidões.
— Não temos mais como entrar em contato com eles. Sabemos onde eles estão, mas estamos numa situação bastante desconfortável. [explicamos o teor] Consideramos então que eles foram viajar para Portugal e não mais temos contato.
— Então vamos fazer um requerimento para formalizar essa exigência do cartório B. Assim, vocês ficam resguardados para o processo judicial de registro.
E retornamos para casa.
Ou seja, para o cartório B registrar a escritura atual, eu preciso que seja retificada a escritura anterior da vendedora, escritura que já está registrada no próprio cartório B. Como à época (1999) a vendedora já era viúva, para fazer essa retificação, preciso da certidão de óbito de seu finado marido, falecido há mais de 20 anos.
Com todo o respeito: para registrar o nosso imóvel querem que eu apresente o vintenário atestado de óbito do finado marido da vendedora? O quê que isso tem a ver com a gente?! O que virá depois?
Cópia do processo de inventário?
Croqui do imóvel?
Carteira de vacinação do arquiteto?
Certificado de reservista do auxiliar de pedreiro que levantou laje?
Reconhecimento da firma do prefeito?
Mapa potamográfico de Cuiabá?
Esta saga ainda não acabou. Conforme novos eventos forem ocorrendo, continuarei relatando…

Acrescentado em 23/01/2021.
Continuando…
Após retornar a casa e escrever o relato sobre as primeiras semanas, fiquei pensando sobre o caos burocrático que é essa história de cartório. É exatamente por essas coisas que boa parte das pessoas não registra nada. Que fogem do governo sempre que podem. É como se estivesse institucionalizado na sociedade brasileira que fazer as coisas do modo errado é mais vantajoso do que fazer do modo certo.
Não seria muito mais prático deixar para lá e regularizar a documentação só se um dia, no futuro, talvez, quem sabe, quiser vender? Como não temos intenção de vender, não é mais simples tão somente deixar pra lá? O cartório tem que se resguardar da picaretagem endêmica nacional. Donde surge a questão do grande filósofo gastronômico Tostines 2 : há jeitinho por que há burocracia, ou há burocracia por causa do jeitinho? Nisso percebo que o jeitinho brasileiro é simultaneamente tanto ferramenta para lidar com o governo quanto causa do horror burocracial.
Outra questão que me revolta os intestinos é a ladroagem de nosso estupidamente estúpido sistema tributário. Estamos no verão, e, se estiver lendo isso, possivelmente você deve ter um ventilador por perto. Para que você tenha um ventilador é necessário pagar o imposto para produzir o ventilador (ICMS para comprar os insumos, IPI para fabricar), imposto para poder vender o ventilador (PIS/Cofins, INSS patronal, ICMS da venda e IRPJ sobre o que lucrar e CSLL sobre a presunção do lucro), imposto para comprar o ventilador e imposto para usar o ventilador (ISS que vem embutido em sua conta de energia elétrica). (Mais sobre isso em: Custos de importação de equipamentos desportivos)
(E em meu clássico: Cogito tornar-me um cafetão…)
Neste país de atravessadores, você produz um chuchu por vinte centavos e o dito chega ao mercado a R$ 3,00 o quilo. Cada um, da ponta, por toda a cadeia até a outra ponta quer o seu quinhão. É o sujeito que compra roupa numa cidade para vendê-la na outra 50% mais cara. Quem produz não ganha quase nada e quem compra paga mais do que deve.
E o governo não se exime de participar dessa orgia. Para você comprar um imóvel você paga o ITBI (como chamei, extorsão governamental). E paga no cartório imposto para fazer a escritura. E paga no outro cartório imposto para registrar a escritura. E paga para a prefeitura imposto para manter a casa, o IPTU. E quem te vendeu também paga imposto de renda sobre o lucro da venda do imóvel (30%). Isso mesmo! O governo supertributa o negócio sobre um bem que já existia.
É como se dissesse: ”ei, não queremos que você tenha uma casa própria”. ”E, se comprar, vamos dificultar tudo o que pudermos.”
Alguns dias e feriado depois, voltamos ao Cartório F:
— Bom dia, Filipe. Viemos buscar o documento.
— Pois não, aqui está. Como falei, não será possível acertar sem ter a documentação.
— Ah, é isso mesmo… [afinal, eu estou dando a volta na cidade para não ter de ligar pela terceira vez para o vendedor]
Agradecemos a gentileza e atenção, deixo meu cartão, e seguimos em frente.
E voltamos ao Cartório B:
— Bom dia.
[primeiro funcionário]
— Do que se trata? Dar entrada, entregar documentação… (?)
— Não, é que nós trouxemos o documento do Cartório F, dizendo que não é possível cumprir a exigência. Lá eles indicaram que é preciso a ”judicialização na vara de registros públicos”.
— Só um instante, vou chamar outro funcionário.
[segundo funcionário]
— Bom dia, do que se trata?
— Nós trouxemos o documento do Cartório F, dizendo que não é possível cumprir a exigência. Lá eles indicaram que é preciso a ”judicialização na vara de registros públicos”. Eu reitero que essa escritura que vocês querem que eu acerte já está registrada aqui mesmo, neste cartório. [um acréscimo necessário e pertinente]
— Só um instante, vou chamar outro funcionário…
Enquanto isso, batendo papo com os escreventes, eu dizendo que eles já estavam de saco cheio de me ver ali. Afinal, quantas vezes eu já havia retornado? Uma risada leve é uma boa forma de desanuviar o ambiente. Já de há muito é ido meu tempo de me irritar por essas coisas. Aprendi com a vida que não vale a pena.
— Por favor, pode vir falar com a conferencista?
[e lá vou eu pela segunda vez falar com a conferente]
— Oi, voltei. Nós trouxemos o documento do Cartório F, dizendo que não é possível cumprir a exigência. Lá eles indicaram que é preciso a ”judicialização na vara de registros públicos”. Eu reitero que essa escritura que vocês querem que eu acerte já está registrada aqui mesmo, neste cartório. [neste ponto já virou mantra]
— Ainda não é necessário judicialização. Como vocês não conseguiram no Cartório F, podem ainda tentar no Cartório A. Vocês precisam passar lá para tentar obter [a vintenária certidão de óbito do finado da viúva que te vendeu o imóvel].
[baixa o filósofo]
[minutos de debates argumentativos para tentar demover a necessidade de compactuar com o absurdo e eu ter de ligar mais uma vez para o vendedor]
[necas]
— Tudo bem então. Vamos ao Cartório A tentar buscar esse documento e trazer ainda hoje.
— Até daqui a pouco então.
Sem ter solução, e para demonstrar boa-fé, nos dirigimos novamente para o Cartório A:
— Olá, boa tarde.
[a escrevente do primeiro dia]
— Oi, boa tarde. Vocês aqui? Como posso ajudar?
— Tivemos um problema no registro. Pediram a certidão de óbito do Sr. [Fulano].
— Ah, isso não tem problema não. Só um instante.
[ela pega o telefone]
— Sr. [filho da vendedora]. Deu um problema no registro. Precisamos da certidão de óbito do seu pai.
[NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOO! Eu estou rodando a cidade inteira exatamente para não fazer esse pedido!]
— Mas lá no Cartório B disseram que vocês devem ter essa documentação aqui…
— Sim, temos, mas está no arquivo. Precisamos primeiro desarquivar.
— Pode fazer isso agora?
— Não, nenhum desarquivamento é feito na hora. Só para semana que vem.
— Não pode agilizar?
— Não posso, tenho uma escritura para fazer daqui a uma hora fora daqui…
— Outro funcionário pode ajudar?
— Não temos funcionários disponíveis para fazer, estamos com pouca gente. Mas não se preocupe. Volte semana que vem e estará desarquivada. De qualquer modo já pedi para o Sr. [filho da vendedora] o documento e ele vai trazer, então, o que vier primeiro.
— Tudo bem, voltamos semana que vem então.
E saímos cabisbaixos, mais uma vez, sem ter resolvido o problema que nem é nossa culpa.
Eu preciso confessar que estou me sentindo constrangido e consternado com tudo isso. Não pelo serviço no cartório, são as regras. O problema é a regra em si. Imagine-se, caro leitor, nesta situação: ”Oi, bom dia, tudo legal? Que calor, né? Pois é… Mas, e aí? Me empresta a certidão de óbito do teu pai?”. Cara… esse tipo de coisa não se pede… Ainda mais para alguém que não tem nada a ver com a história!
E assim não consegui voltar no mesmo dia ao Cartório B, ficou para a semana seguinte ver se conseguiram desarquivar a documentação (se é que realmente pediram e está arquivada lá…), ou aguardar que o filho da vendedora traga a certidão de óbito de alguém que nem morou no imóvel.
E a saga continua…
- O Estado responde objetivamente pelos erros dos tabeliães, mas invariavelmente as ações regressivas se voltam para os mesmos, resultando em crime de improbidade administrativa. ↩
- Tostines de Cacau é um dos maiores filósofos da contemporaneidade gastronômica brasileira. Afinal, é fresquinho porque vende mais, ou vende mais porque é mais fresquinho? ↩