Minhas críticas à BNCC:
1) Primeiro de tudo, o texto é mal escrito. Demasiadamente enfadonho e prolixo, há momentos em que o texto segue, segue e não se desenvolve. De pernóstico já basto eu, mas ao menos procuro resumir o que tento dizer.
2) Nas 600 páginas desse calhamaço, não há uma única vez sequer a palavra ”autismo”. A palavra ”deficiência” aparece 4 vezes em menção à lei de inclusão, mas a palavra ”deficiente” não aparece. A BNCC não é inclusiva às crianças que mais precisam de ajuda, apenas finge ser por questões políticas. Não estão previstos na BNCC, de forma explicitamente designada, parâmetros para lidar com crianças com dificuldades de aprendizagem. (A palavra ”dificuldade” aparece somente 2 vezes e sem relação com o processo de aprendizagem).
Também não aparece a palavra ”demência” (mas esta eu ainda posso relevar por ser um assunto do campo de saúde).
3) A BNCC tenta ser um guia geral, e, por isso, é tão generalista que não propõe algo concreto. Sua contribuição fica num campo muito abstrato, como que numa ”carta de intenções”. Ela diz o que fazer, não como fazer. Se, em lugar de ser um guia geral, fosse uma matriz curricular prática, teria sido um trabalho muito mais útil.
4) Em nenhum momento se mencionam as ”janelas de aprendizagem” (”windows of opportunities”), períodos de tempo específicos na vida da criança (já bem conhecidos e determinados) onde o cérebro está em condições ótimas de aprender/apreender certas coisas. Pelo contrário, a BNCC explicita claramente não haver ordem hierárquica ou temporal para a implementação das aprendizagens essenciais. Perde-se a oportunidade de institucionalizar melhores práticas pedagógicas como o padrão esperado a ser implementado na primeira infância, e em lugar disso, mantém-se a discricionariedade possivelmente sub-ótima dos entes educacionais no planejamento pedagógico dessa fase.

5) A BNCC trata o ensino em escolas como sendo prioritário: “[…] ingresso e permanência em uma escola de Educação Básica, sem o que o direito de aprender não se concretiza.” (p.15) Ou seja, homeschooling não é abarcado pela BNCC. Não apenas a questão da instrução obtida por meio do ensino doméstico é omitida, mas também a importância das creches na educação pré-escolar é superestimada, como se a permanência da criança com a família nesse período não fosse muito mais importante do que a função meramente auxiliar do Estado.
Bebê é para ficar com a família. Creche é o último recurso quando os pais e família não podem/conseguem cuidar do bebê. Essa idéia de entregar os bebês para serem criados por agentes do Estado tem origens repudiáveis e faz parte da ideologia que hoje corrompe a sociedade ocidental.
O que seria correto era a BNCC/Estado chamar as famílias para participar ativamente da educação infantil, orientando que essa educação se dá desde a primeira infância, ensinando aos pais tanto as técnicas para o desenvolvimento cognitivo dos bebês quanto as técnicas para aferir se a criança tem algum tipo de problema de desenvolvimento.
6) O choque que ocorre quando da passagem da primeira para a segunda fase do ensino fundamental (da professorinha do ano para os 500 professores de matérias) é similar ao choque sobre o qual escrevi em meu TCC de docência, quando saímos do ensino médio (os professores e a escola te ajudam) para o ensino superior (se vira aí). Esse choque é discriminado na BNCC, que orienta “Realizar as necessárias adaptações e articulações, tanto no 5º quanto no 6º ano, para apoiar os alunos nesse processo de transição, pode evitar ruptura no processo de aprendizagem, garantindo-lhes maiores condições de sucesso.“. (p.59)
Mas como? O choque se dá exatamente pela mudança brusca de metodologia pedagógica (tal como no caso do ensino superior). Em meu TCC, minha proposta de ”alfabetização acadêmica” consiste exatamente em acolher e orientar os ingressantes no novo método de ensino-aprendizagem no qual estarão inseridos. Mas não encontrei nada parecido na BNCC, deixando a cargo das escolas definirem como isso será implementado. Ou seja, reconhece-se um problema já conhecido, desconhece-se a solução, e passam a batata-quente para os professores na ponta da linha. ಠ_ಠ
7.a) O uso de tecnologias de comunicação pelos jovens é estimulado juntamente com o desenvolvimento de sua autonomia. Do meu ponto de vista, criança não deveria ter acesso a telefone celular, muito menos computador com internet. A humanidade está encantada com as telinhas coloridas, mas nada substitui o hábito de ter um bom livro nas mãos, de escrever à mão, de desenhar mapas à mão, fazer resumos à mão, de procurar em enciclopédias físicas e dicionários à mão. A tecnologia é inventada para facilitar as coisas, mas na ânsia de dar aos filhos o que não tivemos, por vezes esquecemos de dar aquilo de bom que tivemos.
Para saber mais: Psicólogo vê risco de retrocesso para humanidade com vício em telas
7.b) Parece-me demasiadamente precoce que, na realidade brasileira, sobre crianças de 6 a 14 anos seja imputada a responsabilidade de decidir autonomamente sobre certas questões. O estímulo à independência das crianças é interessante, mas não é uma questão restrita ao contexto escolar. Para que a criança tenha autonomia, é necessário todo um contexto sociocultural, que envolve desde o núcleo familiar, passando pela sociedade como um todo, até chegar à função do Estado. Colocar a escola como força motriz dessa complexa transformação social sem engajar ativamente e ponderadamente os demais componentes sociais está fadado ao fracasso. No Japão, por exemplo, crianças são praticamente autônomas em totalidade logo aos 10 anos, mas isso é possível graças a todo um contexto cultural na qual ela está inserida. Já no Brasil:
A criança acima e pensa e age de forma autônoma e independente, tal como muitas mulheres adultas que agem sem pensar nas conseqüências de suas ações. Até que ponto, qual é a linha demarcatória, qual é o limite? Defendo que não pode ser assim: criança é criança e deve ser guiada por adultos responsáveis. Ela ainda não tem maturidade (que somente é adquirida com experiência de vida) para decidir por conta própria o que é melhor para si. Por isso sou contrário a experiências tais como a da Escola da Ponte, onde crianças e jovens decidem o que querem estudar. Criança não tem que ter sobre si o peso de decidir essas coisas. Essa responsabilidade é dos adultos. Criança só tem que se preocupar em brincar e aprender.
8) Educação Física (esportes) está posta juntamente com Idiomas e Artes. Compreendo que sejam três formas de expressão humanas, logo são vinculadas semanticamente entre si. Mas são três áreas tão diversas que me parece forçado que tenham sido especificadas conjuntamente (o que difere de uma abordagem/um trabalho transdisciplinar). Cada qual possui conhecimentos próprios, metodologia de trabalho própria, funções sociais próprias. Ainda que possam ser trabalhadas interdisciplinarmente, suas peculiaridades as tornam campos distintos de saberes, ainda que todos pertinentes ao campo maior da expressão humana.
Para saber mais: Gosto se discute, sim.
Para saber mais: Um resumo sobre musculação
9) Por fim, gostaria de ressaltar a ideologia política que permeia trechos do texto. Embora reconheça que a maior parte do texto seja totalmente isenta de vieses políticos, é possível encontrar segmentos onde certas narrativas ideológicas aparecem. Não abordarei a BNCC em sua integralidade, pois seria um extenuante trabalho infrutífero, mas posso exemplificar com uma das passagens em que vi.
Observe o texto da página 68 que segue a seguir:
As práticas de linguagem contemporâneas não só envolvem novos gêneros e textos cada vez mais multissemióticos e multimidiáticos, como também novas formas de produzir, de configurar, de disponibilizar, de replicar e de interagir. As novas ferramentas de edição de textos, áudios, fotos, vídeos tornam acessíveis a qualquer um a produção e disponibilização de textos multissemióticos nas redes sociais e outros ambientes da Web. Não só é possível acessar conteúdos variados em diferentes mídias, como também produzir e publicar fotos, vídeos diversos, podcasts, infográficos, enciclopédias colaborativas, revistas e livros digitais etc. Depois de ler um livro de literatura ou assistir a um filme, pode-se postar comentários em redes sociais específicas, seguir diretores, autores, escritores, acompanhar de perto seu trabalho; podemos produzir playlists, vlogs, vídeos-minuto, escrever fanfics, produzir e-zines, nos tornar um booktuber, dentre outras muitas possibilidades. Em tese, a Web é democrática: todos podem acessá-la e alimentá-la continuamente. Mas se esse espaço é livre e bastante familiar para crianças, adolescentes e jovens de hoje, por que a escola teria que, de alguma forma, considerá-lo? Ser familiarizado e usar não significa necessariamente levar em conta as dimensões ética, estética e política desse uso, nem tampouco lidar de forma crítica com os conteúdos que circulam na Web. A contrapartida do fato de que todos podem postar quase tudo é que os critérios editoriais e seleção do que é adequado, bom, fidedigno não estão “garantidos” de início. Passamos a depender de curadores ou de uma curadoria própria, que supõe o desenvolvimento de diferentes habilidades. A viralização de conteúdos/publicações fomenta fenômenos como o da pós-verdade, em que as opiniões importam mais do que os fatos em si. Nesse contexto, torna-se menos importante checar/verificar se algo aconteceu do que simplesmente acreditar que aconteceu (já que isso vai ao encontro da própria opinião ou perspectiva). As fronteiras entre o público e o privado estão sendo recolocadas. Não se trata de querer impor a tradição a qualquer custo, mas de refletir sobre as redefinições desses limites e de desenvolver habilidades para esse trato, inclusive refletindo sobre questões envolvendo o excesso de exposição nas redes sociais. Em nome da liberdade de expressão, não se pode dizer qualquer coisa em qualquer situação. Se, potencialmente, a internet seria o lugar para a divergência e o diferente circularem, na prática, a maioria das interações se dá em diferentes bolhas, em que o outro é parecido e pensa de forma semelhante. Assim, compete à escola garantir o trato, cada vez mais necessário, com a diversidade, com a diferença.
A princípio, tudo soa muito bem. Porém há, do meu ponto de vista, um gravíssimo problema: “Em nome da liberdade de expressão, não se pode dizer qualquer coisa em qualquer situação.” Isso é verdade. Incitação ao suicídio ou perjúrio são crimes, por exemplo. Mas essas exceções não estão discriminadas no texto. Literalmente, o que há é a defesa da relativização da liberdade de expressão. E liberdade de expressão é irrelativizável: ou você tem, ou não tem. Ou você pode se expressar livremente ou não pode.
“É preciso saber reconhecer os discursos de ódio, refletir sobre os limites entre liberdade de expressão e ataque a direitos, […]” (p. 69) Donde surge o grave problema: quem decide o que pode e o que não pode ser dito? Onde se demarca o limite? Quem define o limite?
Isso foi resolvido em 1791 nos EUA. Ninguém tem esse poder:
Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances.
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O Congresso não fará nenhuma lei a respeito do estabelecimento de uma religião ou proibindo o livre exercício dela; ou cerceando a liberdade de expressão ou de imprensa; ou o direito do povo de se reunir pacificamente e de solicitar ao governo a reparação de suas queixas.
A suprema corte americana também reafirmou há pouco tempo a inexistência da figura jurídica de ”discurso de ódio”. Já no Brasil, a liberdade de expressão não é assegurada de facto, ainda que haja legislação pertinente. Embora os cidadãos sejam amparados pela constituição brasileira em seus artigos 5º e 220, na prática essa liberdade é relativizada consoante a interesses políticos ou ideológicos. Do mesmo modo, representantes legislativos que são especialmente amparados pelo artigo 59 da referida constituição (exatamente para poderem bem exercer suas funções) são punidos dependendo do que disserem e conforme for o caso.
Incluir esse viés ideológico de relativização da liberdade de expressão na Base Nacional Comum Curricular, mascarando-o, embutindo-o dentro de um discurso favorável à independência de pensamento e ao amplo debate, além de incoerente (e hipócrita) é corroborar com a manutenção do controle social: ”você pode falar o que quiser, desde que seja o que eu deixar”.
Encerrando, deixo ao leitor a seguinte tarefa: enquanto há interesse em cercear a plena liberdade de expressão por um lado, observe logo abaixo uma das abordagens preconizadas a serem inseridas dentro do contexto de língua portuguesa pelo outro lado. Qual foi o parâmetro utilizado para sopesar essas decisões? No caso abaixo, é realmente necessário que esses gêneros sejam matéria de estudo dentro de sala de aula?
Analisar as diferentes formas de manifestação da compreensão ativa (réplica ativa) dos textos que circulam nas redes sociais, blogs/microblog, sites e afins e os gêneros que conformam essas práticas de linguagem, como: comentário, carta de leitor, post em rede social, gif, meme, fanfic, vlogs variados, political remix, charge digital, paródias de diferentes tipos, vídeos-minuto, e-zine, fanzine, fanvídeo, vidding, gameplay, walkthrough, detonado, machinima, trailer honesto, playlists comentadas de diferentes tipos etc., de forma a ampliar a compreensão de textos que pertencem a esses gêneros e a possibilitar uma participação mais qualificada do ponto de vista ético, estético e político nas práticas de linguagem da cultura digital. (p.73)