Fonte: Nomes Científicos – 17/11/2020 (texto adaptado)
Pensando unicamente no bem de todos e felicidade geral da nação, vários grupos e empresas estão propondo o fim do uso de palavras e expressões que teriam origem escravista. O Boticário deixou de usar ”Black Friday” e passou a denominar sua temporada de descontos como ”Beauty Week”. O grupo Etna de móveis e decoração baniu o criado-mudo de seu catálogo e agora só vende mesas de cabeceira. O Firefox trocou ”senha mestra” para ”senha principal”, pois, segundo o próprio, ”mestra” remete à relação ”mestre-escravo”. A Secretaria de Justiça e Cidadania do Distrito Federal recomenda que não se diga ”feito nas coxas”, pois essa expressão teria surgido na época em que as telhas eram moldadas nas coxas dos escravos e, por isso, ficavam irregulares.
Entendendo que quem compra um criado-mudo feito nas coxas numa ”Black Friday” é um baita de um insensível desalmado, apresento aqui mais algumas palavras que também precisam ser canceladas‘ para que o mundo seja um lugar melhor. Mas ao contrário das quatro censuras do parágrafo anterior, estas não são pseudo-etimologias:
▪️ Boticário: Vem do latim ”appothecarius”. Na Roma Antiga, era o escravo encarregado do armazém ou da adega (”apotheca”).
▪️ Doula: Nem pense em contratar uma doula para o parto do seu filho. O nome vem do grego antigo ”doúla”, que significa ”escrava doméstica”. Você não quer que ele nasça à custa de uma herança subserviente dessas, né?
▪️ Emancipar: É de bom tom, depois, quando seu filho crescer, não pensar em emancipá-lo, pois emancipar vem do latim ”emancipare”, que significa ”libertar”. A emancipação (”emancipatio”) era a alforria de um escravo (”mancipium”). Que pai gostaria de passar uma impressão dessas?
▪️ Nomenclador: Qualquer cientista que tenha dado nome a alguma espécie ou que se dedique ao estudo da Nomenclatura é um nomenclador. O problema é que nomenclador (”nomenclator”, em latim) era o escravo que lembrava ao senhor o nome daqueles que o procuravam ou com os quais cruzava nas ruas. (Vixi, estou ferrado!)
▪️ Ferrado: Na antigüidade, estar ferrado (”ferratus”, em latim) era, basicamente, a condição do escravo que ficava preso com correntes e grilhões de ferro.
▪️ Monitor: Do latim ”monitor”, era outro escravo da antigüidade que vigiava (monitorava) o trabalho dos demais. Por isso, nem pense em ligar o monitor de seu PC ou pleitear uma bolsa de monitoria lá na faculdade.
▪️ Liturgia: Também na Idade Antiga, havia o ”leitourgós” (em grego antigo) ou ”liturgus” (em latim), que era um escravo pertencente ao Estado. O liturgo cuidava de afazeres de interesse público. Foi daí que apareceu a liturgia, na Igreja, como sendo um serviço oferecido às pessoas.
▪️ Noviço: O escravo bárbaro recém-capturado era chamado de ”novitius” na Roma Antiga. Infelizmente, então, teremos de cancelar ”O noviço rebelde” (1997), de Renato Aragão, um clássico da filmografia brasileira.
▪️ Servidor: Essa não tem nem como negar. Vem do latim ”servus”, que significa ”servo”, ”escravo”. Partindo de ”servus”, já podemos censurar também serviço, servente, o verbo servir e o restaurante self-service (que seria o auto-escravo). O servidor público seria então mero reflexo daquele liturgo, o escravo do Estado.
▪️ Ministro: O poeta romano Virgílio (séc. I AEC.) já falava de ”minister” referindo-se aos ”servos e escravos”. O latim ”minister” vem de ”minus” (menos), pela idéia de inferioridade. Na mesma época, o filósofo Cícero citava o ”minister dei” (ministro de deus) como alguém servo de uma divindade. No século II, o teólogo Justino registrava o ”regis minister” (ministro do rei), pessoa que assessorava o grande chefe. Pronto! Já não quero mais ministrar aulas.
▪️ Pedagogo: Por falar em dar aulas, a Pedagogia é outra palavra que já pode ser rifada. É que, originalmente, pedagogo (”paidagogós”, em grego antigo) era o escravo que conduzia as crianças à escola. Se o pedagogo for um servidor público, então…
Bom, a lista seria ser maior, mas, para um texto de rede social, está bom. Já apresentei muitas palavras que podem ser varridas do nosso vernáculo. Aliás, vernáculo também tem de cair fora, pois vem do latim ”vernaculus” (escravo nascido na casa do amo, ou nascido no mesmo país).
Chega de ironia por hoje. Tchau!
(Ah, tchau vem do italiano ”ciao”, derivada do veneziano ”sciàvo”, que significa ”escravo”. A expressão ”sciàvo vostro” – ”sou seu escravo” – tinha o mesmo peso de dizer ”estou às suas ordens”.)
Fonte: Dicionário Houaiss, 2009.