
Como já escrevi várias vezes, tenho os mais diversos interesses. Pensando sobre eles agora, posso talvez agrupá-los em categorias, como Belas Artes (as 9) e Artesanato, Esportes individuais, Jogos e quebra-cabeças, Campismo, Belicismo, Ciências Naturais, Sociais e Paraciências, Máquinas em geral. Ser um especialista em generalidades causou-me (em parte) rejeição no mundo acadêmico. Meus professores insistiam que eu deveria (no sentido literal de dever ser; obrigatoriedade; praticamente um imperativo moral) focar-me em uma (1) coisa apenas. Isso se contrapõe à minha natureza. Eu nunca foco em algo em particular por muito tempo. Todos esses meus interesses vêm e vão recorrentemente.
Imagine aquela criança que escuta a música do desenho animado do momento. Ela é capaz de repetir milhões de vezes a mesma ladainha, ver e rever o mesmo desenho (ou trecho dele) como que uma vitrola quebrada. Então, do nada, ela se cansa. Esquece completamente aquilo e vai fazer outra coisa.
Eu nunca cresci. Continuo sendo a mesma criança: pego um assunto, fico nele obsessivamente por dias, então me canso, o descarto, e vou fazer outra coisa. Apenas que essa outra coisa é um desses outros interesses peculiares que tenho. Gosto de comparar com uma pessoa que viaja sempre para os mesmos lugares, mas nunca fica tempo demais em cada destino. Por um lado, ela tem o benefício da familiaridade, do conhecimento prévio, de sentir-se em casa. Por outro lado, ela mantém a satisfação da contínua descoberta, a curiosidade de ver o que mudou desde a última vez em que esteve lá, a sensação de aquele lugar sempre ser uma novidade.
Disso posto, estava mais uma vez garimpando one shot graphic novels (novelas gráficas curtas – histórias em quadrinhos artísticas) e encontrei uma que me colocou contra uma questão pessoal que tenho ao lidar com ficção científica: a proporção do suspension of disbelief, isto é, a “suspensão da descrença”. Sempre que lidamos com histórias de ficção, sejam de fantasia, sejam de ciências, há o artifício artístico (um pleonasmo, desculpe) em que se recorre à suspensão da descrença. O autor pede, subentendidamente, que o leitor aceite certos pontos do enredo como verdadeiros, ainda que não lhes haja explicação.
Um exemplo simples vindo da cultura dos quadrinhos é a resposta de Stan Lee, ao falar sobre seus personagens. Certa vez lhe perguntaram, “Mas como esses poderes funcionam?”. No que ele respondeu: “Não faço idéia, só sei que eles funcionam.”. Super-heróis são personagens fictícios, não existem de verdade, não estão presos às regras da vida real. Como qualquer outro personagem, são meras ferramentas que o autor ou o roteirista usam para contar uma história. Não interessa como o Superman voa. Ele voa e pronto. Não interessa como o Batman engana a Receita Federal do país dele. Ele sonega, e ninguém percebe.
Eu tenho em mente tudo isto: de que ficção é ficção, de que não há nem precisa haver explicação para as coisas inventadas. De que o que interessa é a história a ser contada. Contudo, no âmago, minha mente continua tentando encontrar um senso naquilo. Talvez seja minha forma de interagir com as histórias. Eu espero que elas tenham algo a ensinar, algo que eu possa aprender. Por isso critico tudo o que leio o tempo todo, todas as fontes, todas as falas. Incluindo as fictícias.
Toda essa digressão para finalmente chegarmos ao ponto que me deixa encafifado. Qual é o limite para a suspensão da descrença? Até onde um autor pode pedir que seu leitor aceite, ou ao menos não questione, o funcionamento de seu mundo fictício? Antes de chegarmos à Satania, quero falar sobre Blame!.
Blame! (pronuncia-se Blam!) é um mangá cyberpunk. Num futuro distópico, a humanidade se vê fragmentada, habitando uma incomensuravelmente gigantesca mega-estrutura. O personagem principal viaja por essa mega-estrutura procurando sei lá alguma coisa.
Eu não consegui passar dos primeiros capítulos de Blame!. E meu problema foi exatamente a mega-estrutura em que se passa a história. Nessa obra, o autor procurou contar a história de forma mais visual. Há pouquíssimas falas ou interações entre os personagens, sendo que a maior ênfase se dá na própria mega-estrutura em que eles se encontram. Ou seja, o ambiente em que se passa a história é, em si mesmo, um personagem (ainda que inanimado). É parte constitutiva da narrativa. Não é apenas o tabuleiro do jogo, é também um dos jogadores.
Um dos motivos (o motivo menor) que me fizeram parar de ler Blame! logo nos primeiros capítulos foi que considerei a arte aquém da esperada para esse tipo de narrativa. Se o ambiente terá tanta ênfase, considero que a arte deveria ser bem melhor. Pareceu-me excessivamente “suja”, como que, em uma ânsia de buscar o hiperdetalhismo, o autor tentou colocar em preto-e-branco aquilo que precisaria estar em cores. É perfeitamente possível alcançar hiperdetalhismo em preto-e-branco, como no caso dos autores Hiroya Oku (Inuyashiki), Katsuhiro Otomo (Akira), Kaoru Mori (Otoyomegatari) e Takehiko Inoue (Vagabond). Mas a metodologia que Nihei Tsutomu usa em Blame!, ao menos para mim, não funciona. É uma crítica similar a que fiz ao ler Wolf Guy – Ookami no Monshou, embora notadamente aqui a qualidade técnica seja muitíssimo superior. Há sim quadros muito bons, mas o conjunto da obra a torna visualmente cansativa.
Mas o principal motivo que me fez parar de ler foi que não consegui ativar minha suspensão da descrença em relação ao mundo de Blame!. A idéia da mega-estrutura é estupefante, causa perplexidade, causa admiração. Tudo bem, concordo, é muito bacana, muito legal. Porém é fisicamente impossível. Não foram apresentados no mangá, ao menos nos primeiros capítulos que li, outros elementos que expliquem (e sustentem) a diferença entre a física desse mundo com a realidade em que nós, leitores, vivemos. Pelo contrário, a história, parece-me, passar em um futuro alternativo de nossa própria realidade. Ou seja, com as mesmas leis físicas que temos na vida real. Foi nesse momento em que não mais consegui ler. Foi como se houvesse uma farpa em minha mente gritando: “mas como?! … isso não faz sentido!”.
O cenário impossível de Blame! não funciona para mim por dois motivos. O primeiro é que, quando se estuda um pouco de arquitetura, a gente sabe que a resistência dos materiais de construção é determinante para definir o tamanho máximo de uma estrutura. Inexiste material no planeta Terra capaz de sustentar uma estrutura com mais de 25 Km de altura. O que nos leva ao segundo e mais decisivo motivo de eu não conseguir desligar minha descrença para apreciar essa ficção científica.
A mega-estrutura não é apenas horizontal, ela também é vertical. São incontáveis níveis acima e abaixo, cada qual com quilômetros de altura. E onde fica a atmosfera nisso? Por que nos níveis superiores a atmosfera não é rarefeita e, mais importante, como que nos níveis inferiores as pessoas sobrevivem à pressão? Quanto mais profundo é o nível de uma escavação, maiores são as pressões atmosférica e litostática, e, conseguintemente, maior é o calor ambiente. Este aumenta por volta de 100°C a cada 3,5Km de profundidade. Cadê o calor? Cadê o ar rarefeito? Como conseguem água? Como conseguem energia? De onde tiram comida? De onde vem o oxigênio para respirarem?
Ou seja, o lugar não faz sentido a menos que seja introduzido outro elemento de ficção científica, o que não foi feito. O lugar não é crível, embora seja apenas mais um “personagem” imaginário. Eu aceito o Superman voar, o Goku soltar raios pelas mãos, os anões cavarem Moria até chegar ao Balrog, Falkor voar mais rapidamente do que o Nada, mas, sei lá porque, a mega-estrutura de Blame! não teve a mesma benesse que disponho aos demais…
Satania, de Fabien Vehlmann, em certo momento, causou-me exatamente a mesma sensação. E é o motivo de eu estar escrevendo tudo isso.

A história de Satania consiste em uma aventura ao estilo de “Viagem ao Centro da Terra”. Diferentemente de Blame!, Satania procura explicar e embasar “cientificamente” todas as coisas que vão acontecendo. Muito se fala sobre a teoria da evolução de Darwin, dão-se explicações biológicas sobre a origem e o comportamento das criaturas fantásticas que são encontradas, da geologia do local etc. Muitas questões sobre mundo subterrâneo em que o conto acontece não são respondidas, mas não fazem falta. Embora a ambientação seja fundamental para compor a história, o que importa não é o lugar, mas sim a aventura vivida pelos personagens.
Sim, Satania é um lugar impossível. Se nenhuma bactéria é capaz de sobreviver a temperaturas acima de 120°C, a formação de um ecossistema complexo inteiro na base de um vulcão é pura fantasia. Mas, repito, isso não é importante. A história se foca na aventura, nas decisões dos personagens, na tentativa de colocar a realidade das decisões humanas naquele mundo incrível. O enredo se dá nas pessoas, não no lugar em que a história acontece. As ”explicações” constroem apenas a ambientação, servem como lembrete contínuo de que se trata de uma história de cientistas perdidos em um mundo inusitado.
Essa credibilidade ”científica” também se contrapõe ao traço, normalmente utilizado para histórias infantis. Esse jogo entre o fantástico e o real, o científico e o impossível, a estética lúdica e os eventos dramáticos é muito bem trabalhado. Infelizmente Satania peca em seu final. Nas penúltimas páginas, como que para correr e encerrar a história, o autor opta por transformar a aventura em um horror cósmico, à la Junji Ito. Poderia ter simplesmente trocado a parte de horror cósmico para horror psicológico e o impacto seria o mesmo (foi uma decisão realmente estranha para mim e destoa de todo o resto do enredo). Ao menos a viagem de retorno para casa da protagonista Charlie é um toque bem bacana.
Percebe a diferença entre as histórias?
Na primeira, a suspensão da descrença não me é possível por se tratar de um mundo impossível.
Na segunda, também é um mundo impossível, mas não faz diferença para mim.
(trocadilhos, trocadilhos)
Clarificando-me: a suspensão da descrença é necessária para o consumo de qualquer obra de ficção. Seja fantástica, seja científica, da magia até o futurismo. Porém há limites que devem ser respeitados, e esses limites derivam do foco que se dá ao artifício de enredo. Se é dada demasiada importância a esse artifício, ele precisa ser muito bem pensado e bem construído, pois senão a história não fará sentido. Se a narrativa se concentra nas ações e relações entre os personagens, o plot device (dispositivo de enredo) é um mero recurso de ambientação.
Outra graphic novel que posso mencionar aqui é Jolies Ténèbres (Beautiful Darkness, ou Aurora nas Sombras), obra também de Fabien Vehlmann como co-autor e Marie Pommepuy. O estilo gráfico é similar ao de Satania. A história consiste em personagens de fantasia que vêm para o mundo real. Saídos (literalmente) da mente de uma criança, tal como ela, vêem o mundo ao seu redor. Porém no mundo real há fome, há perigos, há morte. A história segue, em especial, a personagem principal Aurora, que me parece ser a auto-imagem da criança que a imaginou.
Nessa história, Aurora comete um ato que, em meu julgamento, a torna irredimível. Imperdoável. Comparando-a com os muitos outros personagens, também moralmente repreensíveis, nada a diferencia deles. Terá sido essa uma estratégia narrativa dos autores? Quiseram eles mostrar que nem sempre podemos nos identificar com os personagens de uma história? Quiseram eles dizer que todos têm uma mancha de escuridão em seu caráter, em seu passado? Quiseram eles só contar uma história que calhou de eu não gostar? (Tomei raiva da personagem.)
Tanto faz, não é isso que quero salientar. Citei Beautiful Darkness porque ela representa bem o argumento deste texto. Os elementos fantásticos de uma história não precisam ser explicados, por mais absurdos que sejam. Percebeu que em nenhum momento eu questionei sobre a origem dos personagens? Eu questionei sobre a trama, comentei sobre os personagens e suas ações, mas nada reclamei sobre o elemento de fantasia. Não há explicação de como aqueles personagens vieram para o mundo real, e isso não importa diante da história que está sendo contada. Essa questão nem ao menos é levantada. Eles estão lá e pronto, tais como os heróis voadores ou os reinos subterrâneos com seus dinossauros no Centro da Terra.
A suspensão da descrença é um artifício poderoso, todavia delicado. No caso de Satania é fácil suspendê-la, pois a adrenalina da aventura ofusca completamente questões secundárias. Já em Blame!, a estrutura (trocadilho intencional) do enredo carece de muito mais explicações. E falando em estruturas e credibilidades, não queria crer que esta semana começa obra para tirar infiltração aqui em casa… Aff… Cadê os anões de Moria quando a gente precisa deles?




