Infância ameaçada: série sobre abuso sexual infantil (parte 8).

VIDA RESTAURADA
É possível superar as marcas deixadas pelo abuso sexual infantil
ANTÔNIO ESTRADA é mestre em Psicologia da Família e doutor em Estudos da Família e do Casamento
NISIM ESTRADA é psicólogo especializado em trauma
Texto adaptado

“Minha vida tem sido marcada por altos e baixos emocionais. Até os 28 anos, meus relacionamentos foram um fracasso! Minha vida profissional, embora eu tenha cursado uma pós-graduação, não decolava. A mediocridade, a tristeza e o ressentimento eram uma constante. Até que eu dei um basta. Estava cansada de sofrer. Tinha que fazer alguma coisa.”

Quantas pessoas passam pela vida como Lúcia (nome fictício), carregando uma carga que continua pesando como uma laje de concreto. Meninas e meninos em todo o mundo, de todas as idades e classes sociais, têm sido vítimas de Abuso Sexual Infantil (ASI), porque o abuso não respeita gênero, idade, nacionalidade, religião ou nível socioeconômico.

PREVALÊNCIA
Estima-se que metade da população infantil ao redor do mundo já tenha sofrido algum tipo de abuso (Ben Mathews, New International Frontiers in Child Sexual Abuse [Springer, 2018]). Porém, como foi demonstrado ao longo desta edição, os números não descrevem toda a realidade, uma vez que representam os casos que foram notificados. O ASI é um crime raramente denunciado porque não deixa testemunhas e, às vezes, nem evidências.

Cada pessoa reage de maneira diferente diante da situação. O que sabemos é que não existe abuso sem conseqüências. As vítimas lutam contra um silêncio perturba- dor e sofrem incompreensões de familiares e amigos, e isso afeta a qualidade de vida e compromete o direito de viver em um ambiente saudável. Os danos dependerão da idade em que a situação ocorreu, da freqüência, do tipo de abuso e da relação da vítima com o agressor. Mas as implicações são amplas, podendo afetar a dimensão física, emocional, social, sexual, espiritual, cognitiva e laboral. Em termos psicológicos, as vítimas são mais propensas a ser diagnosticadas com depressão e ansiedade e apresentar taxas mais altas de transtornos psiquiátricos, alimentares e do sono (link.cpb.com.br/933066). Além disso, apresentam níveis de bem-estar abaixo da média, dependência de álcool e de outras substâncias prejudiciais, alto risco de promiscuidade, tendência ao sexo prematuro com múltiplos parceiros e desejo sexual hipoativo ou hiperativo (link.cpb.com.br/fe03f0 | link.cpb.com.br/dddd1f | link.cpb.com.br/5941aa). A essa lista, pode-se acrescentar também déficit de atenção, baixo desempenho acadêmico, dificuldade de se concentrar e tomar decisões, desconfiança e insegurança.

NEUROPLASTICIDADE
O trauma da violência impacta o desenvolvimento das vias neurais que estão em fase de for- mação durante a infância e a adolescência. As reações parassimpáticas (calma e tranqüilidade) são opostas ao estado de alarme e perigo que é regulado pelo sistema nervoso simpático. Quando ocorre abuso sexual infantil, essas duas vias neuronais se “cruzam”, e a reação de sobrevivência é ativada com mais freqüência, fazendo com que a pessoa tenha dificuldades de se sentir segura. Esse freqüente estado de alerta é uma das principais razões pelas quais as pessoas desenvolvem modos de enfrentamento pouco saudáveis, associados às dificuldades que mencionamos anteriormente. Felizmente, hoje se sabe muito sobre neuroplasticidade. As vias neurais podem ser alteradas.

Um dos fatores que auxiliam nesse processo é o apoio de um profissional de saúde mental e a conexão segura com outra(s) pessoa(s). Isso ajuda a regular a reação de sobrevivência que foi alterada pelo ASI. Ao ser capaz de criar momentos de segurança ou tranqüilidade, você pode iniciar o processo de mudança dessas conexões neurais para uma resposta mais saudável.

Existem terapias cognitivas e somáticas que auxiliam na auto-regulação das funções parassimpáticas e no retorno da calma e tranqüilidade. Ao mesmo tempo, fazer parte de uma comunidade religiosa que pro- mova um ambiente de “graça” em vez de condenação ajuda essa pessoa a se sentir segura e não culpada. Encontrar maneiras de ativar o sistema nervoso paras- simpático é fundamental para reabilitar as vias nervosas afeta- das pelo ASI e voltar a aproveitar a vida ao máximo. Isso não é fácil nem rápido, mas é possível.


Fonte: https://downloads.adventistas.org/pt/ministerio-da-mulher/materiais-de-divulgacao/quebrando-o-silencio-2024/