Infância ameaçada: série sobre abuso sexual infantil (parte 4).

PERIGO DENTRO DE CASA
WILIANE PASSOS: jornalista
Texto adaptado

Eram três da manhã quando Camila1 acordou sua mãe. “Preciso de ajuda! Não estou conseguindo dormir e tenho que contar uma coisa: eu não quero ir com vocês amanhã”, a garota revelou.

Ela então revelou que, em uma visita à casa dos avós, um dos tios se aproximou e disse que queria tocar em suas partes íntimas. Não foi a única vez que isso aconteceu. A menina se sentia muito incomodada com a situação, mas sofria em silêncio. Camila tentou compartilhar o ocorrido com uma prima que, ao ouvir o relato, não acreditou na história e a orientou a não falar sobre isso com mais ninguém. Casos desse tipo são mais comuns do que imaginamos.

Segundo o “Relatório do Status Global sobre Prevenção da Violência contra Crianças 2020”, divulgado pela ONU, quase metade de todas as crianças no mundo sofrem violência física, sexual e psicológica regularmente (acesse: link.cpb.com.br/823410). O abuso sexual é geralmente cometido por pessoas próximas, nas quais a vítima confia.

Aline1 sofreu esse tipo de abuso dos 7 aos 11 anos. “Minha mãe foi a primeira pessoa para quem tive coragem de contar, aos 13 anos. Mas só fiz isso depois que o abusador, que era o esposo da minha tia, havia se mudado para outro país”, relata.

A mãe de Aline foi a única pessoa que acreditou nela. Ao revelar o que estava acontecendo, a garota ficou surpresa com o fato de que a mãe também tinha sido abusada por um familiar. “Infelizmente, é muito mais comum do que a gente imagina”, ela realça.

É crucial prevenir a violência contra crianças e adolescentes e compreender as diversas formas pelas quais ela ocorre. “Qualquer ato que pretende gratificar ou satisfazer as necessidades sexuais de outra pessoa, incluindo indução ou coerção de uma criança para engajar-se em qualquer atividade sexual ilegal”, configura-se como abuso e exploração sexual infantil, conforme define o Ministério Público do Paraná, no Brasil. Isso inclui também o uso de crianças em prostituição ou em atividades e materiais pornográficos.

Um dos principais desafios enfrentados pelas autoridades policiais ao investigar casos de abuso sexual infantil é que, por ocorrerem no ambiente familiar, as vítimas geralmente não denunciam. Quando o fazem, podem enfrentar dificuldades na comprovação e ser desacreditadas pelos familiares, o que desencoraja novas denúncias, conforme explica Leonardo Pinaffo, delegado no Brasil.

VÍTIMAS VULNERÁVEIS
O abuso sexual infantil é um tema que ainda encontra resistência, preconceito e o silêncio das vítimas e suas famílias.

Por isso, as estatísticas reais ficam comprometidas. Segundo um estudo da Rainn, uma das maiores organizações sociais dos Estados Unidos que atuam na luta contra a violência sexual, em 93% dos casos as vítimas menores de 18 anos conhecem o agressor.

A delegada Danielle Lima Matias dos Santos, especializada em casos de violência sexual infantil, destaca a importância de acreditar na palavra da vítima nesse tipo de crime, pois geralmente não há testemunhas. A palavra dela, registrada no momento da ocorrência, orienta a investigação e o processo penal. Danielle ressalta ainda que muitas vítimas demoram anos para denunciar devido a ameaças, falta de conhecimento ou de proteção, o que dificulta a investigação e a obtenção de provas.

Já em 2011, uma revisão de 217 estudos revelou que uma em cada oito crianças no mundo (12,7%) era vítima de abuso sexual antes dos 18 anos (“A Global Perspective on Child Sexual Abuse: Meta-Analysis of Prevalence Around the World”, Child Maltreatment, v. 16, nº 2, p. 79-101). O relatório intitulado “A New Era for Girls: Taking Stock of 25 Years of Progress”, publicado pelo Unicef em 2020, estima que uma em cada 20 meninas entre 15 e 19 anos (aproximadamente 13 milhões) foi forçada a fazer sexo em algum momento da vida.

A psiquiatra Maria Gabriela Dias Aragão, especialista em sexualidade humana, sublinha que os pais devem observar sinais tanto nas crianças quanto nos familiares para prevenir casos de abuso sexual infantil dentro de casa. Ela revela que a criança vítima desse ato pode ter dificuldade em estabelecer vínculos de confiança nas relações afetivas e distúrbios no desenvolvimento da sexualidade. Aline, a vítima mencionada no início desta reportagem, conta que o abuso impactou profundamente sua personalidade, seus relacionamentos e sua vida em geral. Quando aceitou o pedido de casamento de seu então namorado, viu-se confrontada com a turbulência emocional e o medo de como o trauma afetaria sua vida conjugal. Ela percebeu a necessidade de buscar ajuda profissional para lidar com os efeitos da violência. Esse apoio é fundamental, pois vai do diagnóstico ao tratamento, provendo os cuidados necessários no âmbito multidisciplinar. Além disso, o profissional pode atuar como testemunha e prestar depoimento em casos que forem judicializados.

PERIGO NO AMBIENTE VIRTUAL
O abuso sexual também se propaga no mundo virtual. Em 2022, a Internet Watch Foundation (IWF), organização que atua na luta contra o abuso sexual infantil on-line, recebeu 375.230 relatórios e confirmou 255.571 endereços de páginas na internet com imagens de abuso sexual infantil. A cada 2 minutos, eles removem uma foto de criança sofrendo abuso sexual e recebem mais de 7 mil denúncias por semana. Um relatório de 2020 do Unicef mostra que meninas são as vítimas mais recorrentes dos crimes virtuais, atingindo 12,9% das norte-americanas entre 14 e 17 anos, e 15% das espanholas de 12 a 15 anos (“Action to End Child Sexual Abuse and Exploitation”, p. 5).

Por isso, os pais e cuidadores devem orientar e filtrar o acesso à internet, promovendo o uso seguro e educativo. O monitoramento e diálogo contínuos são essenciais para reduzir os riscos de abuso e exploração sexual on-line. A falta de controle pode facilitar o contato de agressores com as crianças, resultando em exploração e compartilhamento de material abusivo. Afinal, mídias sociais, aplicativos de bate-papo, fóruns e games têm sido usados pelos agressores.

FALTA INFORMAÇÃO
Aline e Camila demoraram anos para falar sobre o abuso que sofreram devido à falta de orientação e segurança em seus ambientes. Aline ressalta a importância de projetos que tratem abertamente do assunto em igrejas, escolas e lares. Ela também encoraja os pais a ouvir seus filhos, saber onde estão e com quem estão brincando. Informar-se a respeito do assunto é uma forma de proteger as crianças e estar preparado para ajudar outras pessoas.

Segundo a psiquiatra Maria Gabriela Dias Aragão, existem sinais e sintomas comuns em crianças que foram vítimas de abuso sexual. Mudanças comportamentais como retração social, exibicionismo e agressividade podem ser indicativos.

É importante notar que a criança adotará comportamentos que não são comuns para ela. Reações repentinas, silêncio predominante, proximidades excessivas, comportamentos sexuais, falta de apetite, afastamento dos amigos e notas baixas na escola também podem ser sintomas de abuso.

A delegada Danielle Lima sugere algumas medidas que podem ajudar na prevenção do abuso sexual infantil. A primeira delas é a educação sexual desde cedo, ensinando a criança a identificar partes íntimas, limites e toques abusivos, além de incentivá-la a falar sempre a verdade (veja o artigo da p. 14).

PERFIL DOS ABUSADORES
Abusadores geralmente têm relações próximas com a família, são sociáveis e se dão bem com a criança. Eles se mostram como cuidadores, buscam ganhar sua confiança e dedicam mais atenção a ela do que aos outros. Muitas vezes, essas pessoas passam tempo compartilhando atividades com crianças. Podem ser treinadores, babás, professores, etc. Afirmam amar as crianças e usam truques, atividades e brincadeiras para ganhar sua confiança. Podem pedir que a criança guarde segredos e usam ameaças para amedrontá-la. As brincadeiras freqüentemente envolvem carinho, beijos e toques inadequados. Além disso, essas pessoas podem expor a criança a material pornográfico e tentar extorqui-la e suborná-la, misturando essas ações com afeto e amor para confundir e isolar.

De acordo com o estudo intitulado “Perfil Psicológico de Delincuentes Sexuales”, publicado na Revista de Psiquiatría da Faculdade de Medicina de Barcelona, o abusador de crianças geralmente não usa violência (acesse: link.cpb.com.br/8ed90c). Ele consegue convencê-las a manter o relacionamento por meio da manipulação da inocência e vulnerabilidade infantil. Esse comportamento é conhecido como pedofilia e, de modo geral, requer tratamento psiquiátrico, pois é difícil ser mudado sem ajuda profissional.

AJUDA
Para prevenir o abuso sexual infantil são necessárias ações que promovam um ambiente seguro para o desenvolvimento das crianças. Fortalecer a rede de apoio, conscientizar sobre os sinais e as conseqüências do abuso infantil, oferecer suporte e tratamento a familiares com transtornos mentais e detectar precocemente situações de risco são algumas estratégias eficazes.

Denúncias podem ser feitas de forma anônima por meio de diversos canais, incluindo sites, aplicativos e até o WhatsApp. É importante que os adultos se informem sobre esses casos e estejam dispostos a denunciar. As informações fornecidas ajudam a identificar os responsáveis e garantir a segurança dos menores.


Fonte: https://downloads.adventistas.org/pt/ministerio-da-mulher/materiais-de-divulgacao/quebrando-o-silencio-2024/


  1. Os nomes foram alterados para preservar a identidade das vítimas.