Em resposta a: “O homem mediano assume o poder”

Novamente inspirado pelo amigo Veber, que sugeriu a leitura do texto de Eliane Brum¹, tive a oportunidade de ler algo oriundo de uma visão diametralmente oposta à minha. É sempre bom ler algo que o seu oposto escreve, isso te força a reanalisar suas próprias defesas e posturas. Independentemente de mudá-las ou reafirmá-las, rever sempre o que se pensa é uma forma de permanentemente autoavaliar-se e tomar consciência se estamos ou não seguindo no caminho ”correto”.

Ainda que eu tenha discordado do texto em quase tudo, ele foi ”legível” até o momento nos últimos parágrafos quando a autora recorre ao ataque à personalidade.

Em Filosofia, temos que esse ataque sempre ocorre quando o oponente do debate já não pode mais contra-argumentar e tem como último recurso o ataque direto ao interlocutor/opositor, numa forma inversa ao recurso da autoridade. Isto é, inverso ao modo em que se procura atribuir peso a argumentos referenciando como defensor especialista renomado, tenta-se desvalorizar o outro como se isso invalidasse determinada proposta ou defesa dele.

O ataque à personalidade parte do pressuposto de que a Verdade depende de quem fala, o que é um erro. Ao fazê-lo, o autor sai do campo dos argumentos e envereda irretratavelmente no campo da opinião. Haja vista que não há opiniões certas ou erradas, a contra-fala sai do campo do debate e entra no da discussão. Considero que expor a opinião é sempre válido, mas saliento o preço do Argumentum ad hominem (que vez ou outra também pago – cientemente).

O principal problema que vejo é na mescla de argumentos e opiniões. O texto começa argumentativo (tendencioso, mas ainda assim argumentativo) e paulatinamente o entretecido alinhamento ideológico da assim chamada ”esquerda” (típico do do El País) vai se sobrepondo até que a autora, parece-me, não se contém mais e reduz seu rebuscado (e bem escrito) trabalho a reles ofensas. Ironicamente arroga-se a mesma ”pecha” de ”criança mimada” a que alcunhou o ”coiso” e seus familiares. Ela praticamente usa todos os níveis de diálogo da pirâmide de Graham num só texto!

Pirâmide de Graham - Fonte: wikicommons
A Pirâmide de Graham é uma forma de analisar os argumentos e falas de um oponente no debate. Quanto mais próximo da base, menos valor construtivo o enunciado possui. – Fonte da imagem: wikicommons

No que Veber me responde:

“Quanto ao Ad Hominem, vá lá, é difícil não atacar o autor quando seus argumentos se misturam na sua pessoa. Não li NADA na imprensa, de esquerda ou direita, que se ativesse apenas ao conteúdo.”

Touché! E talvez tenha sido exatamente isso que o beneficiou tanto. Já dizia a vovó: não discuta com pessoas de baixo calão, pois elas têm mais experiência em fazer barraco e vão vencer você no grito. Bolsonaro foi eleito exatamente por meio do discurso ad hominem, voltado contra a ”esquerda”. ”Eles contra nós”, pois ”tudo o que vem da esquerda não presta”. Marina Silva, num dos debates, já afirmava isso, que ele queria ganhar no grito. E tal entidade da floresta não contava que ele iria ganhar mesmo, pois ele manifestou em si o grito que estava entalado na garganta de (em tese) 58 milhões de cidadãos que não querem mais a ”esquerda” e o que ela passou a representar. (Ad hominem funcionando ad partidum esquerdopatum).

“O Olavo de Carvalho vive fazendo isso em um nível muito mais Hardcore e é considerado guru…”

Ora, porra: não é à toa que é guru de Bolsonaro. Falam o mesmo dialeto, têm a mesma etiqueta, elegância e eloqüência. Quase um Chiquinho Scarpa…

Quando faço meus textos, eu procuro diferenciar o que é argumento do que é opinião. Basta ler a série ”Brasil – Pátria achacadora” para ver que minha capacidade de ofender os outros é quase ilimitada. E que os textos são puramente opinativos, despidos de argumentos ou da defesa de algo. Já o texto ”A Falácia da Educação” é bastante argumentativo, e minha opinião fica apenas nas entrelinhas da posição que defendo.

Interessante ela considerar que a expressão ”feminista mal comida” ”se tornou comentário inaceitável de um neandertal”, mas é aceitável que o presidente e seus ”principezinhos” sejam ”crianças mimadas”, homens medíocres esperando aprovação das excelências ”adultas”. Significa que precisamos apenas dosar os adjetivos de nossos antagonistas para nos mantermos politicamente corretos… Ao menos, até um próximo medíocre decreto.

(texto escrito às 3h da manhã – não me cobre muito) Texto revisado, ampliado e final (ver. 05/01/2019)


Crítica propriamente:

PARTE 1  – ARGUMENTOS TENDENCIOSOS

Desde 1 de janeiro de 2019, o Brasil tem como presidente um personagem que jamais havia ocupado o poder pelo voto. Jair Bolsonaro é o homem que nem pertence às elites nem fez nada de excepcional.

Ele ocupou o poder por 27 anos na Câmara Legislativa. Sabe, a ”casa do povo” é onde o verdadeiro poder (em teoria) deveria se encontrar num regime assim declarado ”democrático”. Correção: ele não ocupou o poder Executivo antes, tal como Dilma e Lula. Mas parece que para estes não foi cobrada pela imprensa experiência prévia.

Esse homem mediano representa uma ampla camada de brasileiros. É necessário aceitar o desafio de entender o que ele faz ali. E com que segmentos da sociedade brasileira se aliou para desenhar um Governo que une forças distintas que vão disputar a hegemonia.

Num regime autodeclaradamente democrático, não se disputa ”hegemonia”. Faz-se valer o que foi decidido em eleição. A hegemonia sempre é do povo. Quem quis usurpar dessa hegemonia foi o governo anterior.

[…] a configuração encarnada por Bolsonaro é inédita. […] Mesmo que seja uma difícil de engolir para a maioria dos brasileiros que não votou nele […] O “coiso” está no poder. O que significa?

Que o Lula VAI CONTINUAR PRESO. E que vocês perderam. E feio. (não resisti – huehue)

Ela então escreve longos parágrafos elogiando Lula.

O Lula que conquistou o poder pelo voto era excepcional. […]. Um líder brilhante, que comandou as greves do ABC Paulista […] e se tornou a figura central do novo Partido dos Trabalhadores […] Lula era o melhor entre os seus, o melhor entre aqueles que os brancos do Sul discriminavam com a pecha de “cabeça chata”. […]

Mas comete erro falho ao afirmar que:

”Não se escolhe um qualquer para comandar o país, mas aquele ou aquela em que se enxergam qualidades que o tornam capaz de realizar a esperança da maioria.”

Ora, é exatamente isso o que aconteceu! A única diferença é que pela primeira vez em quase 30 anos o escolhido não foi aquele que a ”esquerda” apontou. E haja vista que a esmagadora maioria da imprensa tradicional é cooptada pelos ideais da ”esquerda”, encontramos textos como este que ora critico.

Daí ela fala de Marina Silva, como se sofrimento de vida fosse automaticamente convertido em algo louvável. Acredito que Marina só entrou no texto para fazer cota para mulheres.

Jair Bolsonaro, filho de um dentista prático do interior paulista, oriundo de uma família que poderia ser definida como de classe média baixa, não é representante apenas de um estrato social. Ele representa mais uma visão de mundo. Não há nada de excepcional nele. Cada um de nós conheceu vários Jair Bolsonaro na vida. Ou tem um Jair Bolsonaro na família.

Observe aqui a contraposição que ela fez: Lula excepcional (em vários parágrafos), Jair comunzinho (em nota). Logo após ela afirma que exatamente essa diferença fez com que Bolsonaro vencesse, pois

[…] quase 58 milhões de brasileiros escolheram um homem parecido com seu tio ou primo. Ou consigo mesmos. [guarde isso, comentarei depois, quase ao final]

O que considerei interessante nesse argumento foi o caminho que a autora percorreu para fundamentá-lo: elogiando Lula (o adjetivo ”excepcional” intencionou dupla interpretação – ”que é brilhante” X ”que foge ao padrão”); citando Bolsonaro; equivalendo ambos como fenômenos eleitorais; mas enfim desmerecendo a origem do segundo, porque não teve um início paupérrimo. Isto é bastante arraigado no imaginário popular brasileiro: para fazer sucesso, você tem que sofrer bastante, senão não tem valor. Esse pensamento absurdo e infundado é estimulado até na teledramaturgia.

PARTE 2 – OS MESMOS JÁ BATIDOS ATAQUES DA IMPRENSA A BOLSONARO E SEUS ELEITORES

Neste ponto o texto pára a construção argumentativa e parte para os já batidos ataques a Bolsonaro que saturaram as mídias nos últimos 6 meses…

Essa disposição dos eleitores foi bastante explorada pela bem sucedida campanha eleitoral de Bolsonaro, que apostou na vida “comum”, falseando o cotidiano prosaico, […]

  • Argumento que insiste que a vida comum de Bolsonaro foi jogada eleitoral, devidamente orquestrada para fazer-lhe parecer um homem comum.
  • Contra-argumento: o sujeito é genuinamente e visivelmente um cavalo (que a Michelle conseguiu amansar). Não precisa fingir. Ele é aquilo mesmo.

Como militar, ele só se notabilizou por quebrar as regras ao dar uma entrevista para a revista Veja reclamando do valor dos soldos.

  • Argumento: Bolsonaro não se notabilizou ao público por sua vida militar.
  • Contra-argumento: A idéia é essa. Militares não devem se notabilizar ao público fora da caserna. Eles fazem parte de um corpo que atua em conjunto, representam uma corporação (daí o nome). Entregam a vida (literalmente) à pátria. Quem quiser fazer próprio nome que siga a vida civil.

Como parlamentar por quase três décadas, conseguiu aprovar apenas dois projetos de lei.

  • Argumento: a produção de um deputado se mede pela quantidade de leis aprovadas.
  • Contra-argumento: isso demonstra total desconhecimento do que é uma câmara legislativa e do que se faz lá dentro. Se 513 deputados aprovassem duas leis por ano, seriam 1026 leis novas a cada ano. As principais discussões são sobre orçamentos e mudanças de leis que já existem.

Era mais conhecido como personagem burlesco e criador de caso.

  • Qualquer um que enfrente o status quo é assim chamado.

Quando Tiririca foi eleito, […]

  • Tiririca foi eleito como voto de protesto. Assim como o Macaco Tião ou o Rinoceronte Cacareco. Bolsonaro foi eleito pelo repúdio ao status quo. São dois eventos distintos.

Bolsonaro não. O grande achado foi se eleger deputado e conseguir continuar se elegendo deputado. Em seguida, colocar todos os filhos no caminho dessa profissão altamente rentável e com muitos privilégios.

1 – Bolsonaro não se elegeu. Ele foi eleito. Uma pessoa não se elege, ela é posta lá pelos outros. Isso não foi um erro de expressão da autora. A sintaxe utilizada torna completamente diferente o que é dito e teve fundamento. Observemos: a autora já defendeu previamente no mesmo texto Lula. Argumentos ad personam foram exaustivamente citados. Na entrelinha, identificamos o culto à personalidade, marca indelével e talvez onipresente em todas as experiências com regimes socialistas. ”Lula se elegeu”, ou seja, ele, por sua grandeza, pôs-se à frente do povo. O voto é mero detalhe no processo.

Essa retirada do valor do voto e de quem vota é interessante para regimes autoritários. Vejamos os exemplos dos contínuos plebiscitos na Venezuela. E até mesmo o plebiscito sobre armas no Brasil. O voto do povo só tem valor quando alinhado com os interesses do governante naquele tipo de regime. Fazem-se então tantos plebiscitos quantos necessários até se obter a resposta desejada. E se for indesejada, friamente ignora-se a vontade popular. Daí o discurso ”de esquerda” de que fulano ”se elegeu”. O uso da palavra nesta estrutura é exemplo dos conceitos arraigados na mentalidade da defesa de idéias socialistas.

2 – ”Privilégios”. Palavra central e entretecida em muitos argumentos da autora, os quais não discriminei individualmente. Esse velho discurso batido de ”grupo privilegiado na sociedade”, em que estereótipos de todo tipo qualificam miríades de classes privilegiadas ou oprimidas, tem como base teórica o marxismo e sua divisão da sociedade em classes. Confesso que todas as vezes em que sou rotulado como privilegiado sinto-me irritado. Mas isso é tema para outro texto.

Quando disputou a presidência da Câmara, em 2017, só obteve quatro votos dos mais de 500 possíveis.

  • Pela enésima vez: Bolsonaro disputou a presidência da câmara apenas com o intuito de poder usar a tribuna. Há regras para se usar a tribuna e naquele contexto ele somente poderia discursar caso fosse candidato. Ele usou esse tempo para discursar contra a candidatura de outro congressista. Não teve intenção de se eleger. Nem seu filho votou nele.

As redes sociais permitiram “desrecalcar” os recalcados, fenômeno que tanto beneficiou Bolsonaro.

Ou seja, todos aqueles que não concordam com as mudanças deletérias impostas pelos regimes de ”esquerda”, em especial com as ideologias subjacentes a ações afirmativas, são os ”recalcados”, ”reacionários” etc. etc. Nos (vários) parágrafos seguintes, a autora segue o que já havia sido anunciado nas redes ”de direita”.

”A tática da esquerda no segundo turno será atacar não Bolsonaro, mas os eleitores dele, fazendo-os passar por autoritários, intolerantes e radicais violentos.”

Arthur do Val 9 de out de 2018

Resumindo de forma bem resumida o resumo: ”Nós da esquerda sabemos o que é o melhor para vocês. Se vocês não concordam estão errados e não querem perder seus privilégios numa sociedade tirânica burguesa judaico-cristã patriarcal heteronormativa”.

Aqui começa uma ”sub-seção” do texto, na qual vários parágrafos são dedicados a apontar os supostos privilégios sociais e a suposta importância das ações sociais dos últimos tempos.

[milhões de mimimis depois…] É esse brasileiro “acorrentado” que votou para retomar seus privilégios, incluindo o de ofender as minorias, como seu representante fez durante toda a carreira política e também na campanha eleitoral. Para muitos, o privilégio de voltar a ter assunto na mesa de bar – ou o de não ser reprimido pela sobrinha empoderada e feminista no almoço de domingo.

E isso é pedir muito?

[ainda mais mimimis…] Os direitos de gênero, classe e raça estão conectados.

Quem divide o povo em sexo, classe e raça é a ”esquerda”. A ”direita” só se importa com os direitos do indivíduo, não de um grupo (”a coletividade”). Por que determinado grupo deveria ter mais direitos que outros? Não somos todos iguais perante a lei? Há desigualdades sim, mas isso se resolve criando ainda mais desigualdades?

O reconhecimento destes direitos […] teve grande impacto no resultado eleitoral e também no antipetismo. O ódio dos bolsonaristas se expressa não na ação, mas na reação […] sentem ser legítimo lançar as piores e mais violentas palavras contra o outro. Acreditavam – e ainda acreditam – estar apenas se defendendo, o que na sua visão de mundo justificaria qualquer violência. Também por isso o outro é inimigo – e não opositor.

[aqui retomo o que guardamos antes] Novamente o ataque aos eleitores. Mas nisto encontro uma contradição no texto. Ora, o eleitor bolsonarista é o homem comum, ”do povão”, e o mesmo é cheio de ódio, recalcado por ter perdido privilégios do homem branco heterossexual burguês de elite? Ela segue por vários parágrafos se aprofundando ainda mais essa contradição. Como pode a maioria da população (representada pelos eleitores bolsonaristas) ser privilegiada? Se assim for, então não são privilégios: é a própria natureza de nosso ordenamento social.

Bolsonaro torna-se então aquele que “não tem medo de dizer o que pensa” ou “aquele que diz a verdade”. Bolsonaro se torna herói porque enfrenta o “politicamente correto” e liberta os sentimentos reprimidos de seus iguais.

Ah…! Isto desopila o fígado: a autora usando o termo ”reprimido”! Ao aceitar que o que ocorreu nos últimos anos é percebido pela maioria da população como repressão, uma repressão imposta por um governo de minoria de ”esquerda” sobre uma maioria de ”direita”, a autora cai na contradição do palavrório decorado ostensivamente proferido pelos militantes socialistas: que foram/são reprimidos pelos regimes com os quais não concordam! Parece-me que para ela quando a repressão é contra a minoria, deve ser combatida, mas quando é contra a maioria é um movimento libertário social…

Como sentiam-se oprimidos por conceitos que não compreendiam, os bolsonaristas descobriram que poderiam dar às palavras o significado que lhes conviesse porque o grupo os respaldaria. E, graças às redes sociais, o grupo os respalda. O significado das palavras é dado pelo número de “curtir” nas redes sociais. Esvaziadas de conteúdo, história e consenso, esvaziadas até mesmo das contradições e das disputas, as palavras se tornaram gritos, força bruta.

Trocando uma palavra fica.

”Como se sentiam oprimidos por conceitos que não compreendiam, os esquerdistas descobriram que poderiam dar às palavras o significado que lhes conviesse porque o grupo os respaldaria. E, graças às redes sociais, o grupo os respalda. O significado das palavras é dado pelo número de “curtir” nas redes sociais. Esvaziadas de conteúdo, história e consenso, esvaziadas até mesmo das contradições e das disputas, as palavras se tornaram gritos, força bruta.”

É sempre mais fácil ver nos outros as próprias falhas do que em si mesmo.

PARTE 3 – ARGUMENTOS AD HOMINEM

A partir daqui, os demais parágrafos se limitam a argumentos ad hominem e sobre isso já escrevi acima…

 


Texto comentado: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/02/opinion/1546450311_448043.html

Por que eu pus ”direita” e ”esquerda” sempre entre aspas?: https://www.youtube.com/watch?v=5xekqWxzHbc

 

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