Cultura japonesa – Lado B

Saudações, meu caro gaijin. Esta é a segunda parte em que falo sobre a cultura japonesa de um modo geral. Na primeira parte, falei sobre as coisas que admiro na sociedade japonesa e exemplifiquei com alguns vídeos. Admiro o sentimento de ”pertencimento” (fazer parte de) a um corpo social, o que leva a um senso de responsabilidade e cooperação mútuo entre as pessoas.1 Admiro o respeito, a modéstia, a ordem. Porém, conforme escrevi, passando o tempo a gente vê que as coisas não são tão boas assim. Afinal, o que o Japão teria de ruim?

Os japoneses sabem bem onde seus próprios sapatos apertam. Não pretendo falar sob o ponto de vista japonês. Primeiro, porque não sou japonês; segundo, porque não estou lá. Só posso falar a partir da perspectiva de um estrangeiro. Já aí começam os problemas.

Você é um estrangeiro (gaijin)? Então você sempre será um gaijin. Você jamais será considerado um japonês, mesmo se naturalizando. Não interessa se você mora no Japão há cinqüenta anos, se seu japonês é fluente por ser professor de japonês e cultura japonesa, se sua esposa é japonesa, se seus filhos são japoneses. Você é um estrangeiro, sua mulher é aquela ”casada com um estrangeiro”, seu filho é aquele ”filho do estrangeiro”. Por mais que hoje em dia as coisas sejam muito mais brandas do que eram cem anos atrás, e que os jovens sejam muito mais receptivos, japoneses são ”veladamente xenofóbicos”.

Não interprete mal: os japoneses são bastante hospitaleiros e tratam muito bem os estrangeiros, desde que estes adiram à sua cultura. Você pode viver uma vida maravilhosa por lá seguindo as regras locais, embora no recôndito do nativo você sempre seja visto como um estrangeiro. É completamente diferente do Brasil, país formado pela mistura de gente de todas as partes do mundo. Por aqui, sabendo falar português do Brasil sem sotaque, não tem como saber se o sujeito é estrangeiro ou não. Mas o Japão é um país bastante homogêneo e salta à vista se você vem de fora. Não se esqueça de que o Japão é um arquipélago relativamente isolado no Oceano Pacífico.

Outra coisa que mencionei (duas vezes) no parágrafo acima é a adequação às normas locais. O modo de vida japonês, as relações sociais e o que se espera de você são bem definidos (embora inexplícitos). É extremamente deselegante querer impor seu modo de vida estrangeiro por lá. Eles não têm tolerância alguma com quem quer burlar as regras a todos impostas. Se você se comportar mal, principalmente em espaço público, não se assuste se alguém chamar a polícia para te deter por um ”pequeno desvio” como chamaríamos por aqui no Brasil. Se você vai para o Japão, vai ter que viver em público como um japonês. Ou então nem vá.

Os princípios básicos de boa educação, como não furar fila, manter-se do lado na escada rolante para que outra pessoa passe ao seu lado, colocar o lixo no bolso até encontrar uma lixeira, não falar alto ou tocar rádio no transporte público, cumprimentar respeitosamente quem lhe presta serviço, não se vestir como um mondrongo, todas essas coisas que não vemos no Brasil são o mínimo esperado do seu comportamento no Japão. Japoneses não gostam de pessoas rudes e são bem sensíveis quanto a isso.

Essa formalidade (que se apresenta até mesmo no idioma) cria uma certa barreira cultural, pois muitas coisas que consideramos normais, como abraçar, podem ser consideradas rudes dependendo do contexto. E você acaba ofendendo o nativo sem querer.

Outra coisa que o brasileiro faz é contar vantagem. É o mecânico de Chevette que diz saber consertar até avião a jato, ou o pedreirista que se mete a levantar prédio. Além disso ser muito mal visto, também vai lhe colocar em encrencas. Japoneses não têm esse péssimo hábito de dizer serem mais do que são, pelo contrário, tendem a se diminuir. Exemplifico: digamos que você faça pintura de quadros artísticos; quando perguntado como é o seu trabalho, você, por educação, deve responder que é mediano; assim, quando seu trabalho for apresentado, o cliente poderá se admirar com sua habilidade e com a obra. Se você disser que é um bom pintor, além de ser considerado bastante arrogante, o cliente realmente esperará uma obra-prima e você não será capaz de atender à expectativa dele.

Isso mesmo: se você disser que é bom em algo, japoneses esperam que você seja realmente muito bom naquilo. E você vai ter que mostrar serviço. Se no currículo você disser que seu japonês é bom, vai ter que ser realmente muito bom. Business level? Vai ter que ler e interpretar correspondência administrativa e contábil logo no primeiro dia. Fluency? Ai de ti se não entender o cliente com dialeto de outra ilha. Eles não aceitam quem conta vantagem e, se descobrirem que mentiu no seu currículo, você pode perder o emprego na hora. Nunca se vanglorie por lá e conheça o seu lugar.

Uma terceira coisa, falando mais a fundo sobre trabalho, é que o modo como o japonês lida com sua profissão é totalmente diferente do que fazemos por aqui. Por lá, seu trabalho não é uma extensão de sua vida, um adendo, ou uma coisa que você faz para sobreviver ou ganhar dinheiro. Ele é parte integrante de sua vida, é o que te define como membro da sociedade japonesa. Todo trabalho é valorizado e respeitado. Claro que quanto mais alta for sua posição na hierarquia econômica, mais bem visto você é. Mas do faxineiro ao deputado, todos têm um trabalho a realizar como parte do todo. Seu trabalho não é só para você, é para todos ao seu entorno. Se você faltar com suas obrigações, outra pessoa terá que assumir a carga por si.

Aquela noção de pertencimento de que falei faz parte de toda a estrutura social, incluindo o trabalho empresarial. No Japão, trabalhar numa empresa é fazer parte de um time. Não há espaço para individualidade. Você precisa estar sempre se comunicando, sempre participando da interdependência coletiva. Num país como o Brasil, onde só quem marca gol é ovacionado, isto é, em que membros da mesma equipe disputam picuinhas entre si, a cultura japonesa de ajuda mútua entre membros é um conceito alienígena. Apesar de parecer muito bom, isso tem um problema grave.

É a partir daí que surge o grande problema com as horas extras no Japão. O dia de trabalho termina quando a tarefa do dia termina, não quando o relógio marca a saída. Não são incomuns 12h, 14h, 18h de jornada de trabalho. Não é um ”extra”. É o que se espera de você. Isso é um problema gravíssimo no Japão. Muitas pessoas adoecem estafadas pela excessiva carga de trabalho. Burnout, depressão e suicídios. A expectativa e a cobrança são constantes e muita gente não consegue lidar com a pressão contínua que sofre diariamente. Sem férias, sem descansos, as poucas exceções são eventos como casamentos ou funerais. É comum dormir no local de trabalho por pura exaustão. Mortes acarretadas por excesso de trabalho não são incomuns.

Cronogramas e horários são obedecidos rigorosamente. Não se toleram atrasos de qualquer tipo, não há flexibilização. E o serviço deve ser bem realizado. Ou seja, o velho jeitinho brasileiro de postergar as coisas para a última hora e entregar um serviço medíocre é inaceitável. Se você disse que conseguiria levantar um muro em cinco dias, no quinto dia o muro tem que estar pronto e bem feito. Se não puder cumprir o prazo acordado, tivesse dado outro prazo.

Essa inflexibilidade japonesa frente às normas sociais é a principal causa dos problemas da sociedade japonesa. Espera-se que as pessoas cumpram determinados papéis e aqueles que não conseguem se adaptar a essa rigidez são ostracizados. Esse é o resultado do somatório de todas as coisas sobre que discorri até agora.

  1. Japoneses têm uma visão de mundo que coloca o coletivo acima do particular;
  2. Preocupam-se mais com não dar trabalho aos outros do que com a carga que isso impõe sobre si mesmos;
  3. Dão mais valor à sua imagem social do que aos próprios sentimentos;
  4. Vivem em altíssima competitividade, não aceitando que o trabalho não tenha sido feito da melhor forma possível;
  5. Aqueles que não pensam dessa forma são ostracizados pelo coletivo, que não aceita o individualismo de livres pensadores.

Apenas o melhor, somente o melhor, o tempo todo, em tudo o que faz. Você tem que ser o melhor aluno da escola. Tem que passar no vestibular (Sentā Shiken) na primeira tentativa. Tem que entregar o melhor trabalho na empresa. Tem que ser o melhor artesão. Tem que ser o melhor artista. Tem que ser. E ainda tem que dizer que não é tão bom assim. E se não quiser pensar e agir assim, é ridicularizado, zombado, excluído e tratado como um perdedor. O resultado é uma sociedade doente. Uma de minhas postagens com certa procura é sobre os fenômenos hikikomori, kodokushi e manboo.

Hikikomori são os eremitas urbanos. Pessoas que se recusam a estudar e trabalhar, e passam a vida dentro de suas casas ou dentro de seus quartos em casos mais graves. Com a facilidade de fazer compras com entrega domiciliar, elas não precisam sair para nada. Essas pessoas são muitas vezes sustentadas por seus pais idosos aposentados. São pessoas que optaram por apartarem-se da sociedade. Os motivos são os mais diversos: uma decepção amorosa, não passar para a faculdade, perda de emprego. Em todos os casos, são aqueles que não conseguiram suportar a pressão da rígida e estrita sociedade japonesa e, numa ação de fuga, isolaram-se do mundo que os cerca.

Kodokushi é o fenômeno da morte solitária. Esse distanciamento afetivo de si mesmo e dos outros que a sociedade japonesa impõe com um sem número de regras de etiqueta e papéis esperados do indivíduo associados ao envelhecimento populacional faz com que pessoas idosas em cada vez maior número passem a morar sozinhas. São famílias que se afastam. São pais não querem dar trabalho aos filhos. São viúvos sem parentes. São pessoas que vivem sozinhas em suas casas até o último de seus dias, quando morrem vítimas de quedas ou de infartos, por exemplo. Com as contas sendo pagas no débito automático e recebendo suas pensões, ninguém, nem mesmo os vizinhos, dá falta delas. Passam-se semanas ou meses até que descubram o corpo já decomposto no chão de seus apartamentos ou pequenas casas.

Manboo é o fenômeno dos sem-teto que se abrigam em lan-houses (cyber cafes). Pessoas que pelos mais diversos motivos não têm onde morar e optam por alugar um computador numa lan-house para não terem que passar a noite nas ruas. No Japão, os computadores são ofertados nessas casas de forma individual, em cubículos de 2 metros quadrados. Ali os desabrigados podem pernoitar, deixar suas coisas durante o dia e usar o banheiro coletivo. Podem ser pessoas que têm muita vergonha da situação por que estão passando e não querem que suas famílias saibam. Podem ser jovens que fugiram de casa. Podem ser idosos que perderam tudo e não têm outro lugar para onde ir. Ou pode ser uma decisão pensada por conta da crise econômica japonesa.

Embora fugindo do escopo deste texto, creio ser importante registrar que a economia japonesa está horrível. Trabalha-se muito, mas os salários são baixos. O desemprego formal aumenta, com pessoas dependendo de empregos temporários de um ou dois dias. Há ainda uma grave crise habitacional. O preço dos aluguéis é impagável e o número de sem-teto está aumentando. Por vezes, a vida no manboo acaba sendo uma decisão necessária para sobreviver. Isso também pesa no psicológico das pessoas.

Não é à toa que a densidade demográfica da população japonesa encontra-se em queda livre. Quem em sã consciência teria filhos num lugar onde se vive para trabalhar; para atender às expectativas dos outros, alijando-se de si mesmo uma vida inteira; para no final morrer sozinho e esquecido num quarto de 3 metros quadrados? É muito bonitinho ver o Japão pela lente do guia turístico: casinhas bem ajeitadas, pessoas bem educadas, tudo bem limpinho, desenhos animados, artesanato, artes marciais. Enquanto isso, apenas o bosque de Aokihagara registra pelo menos 100 suicídios por ano.

Buda ensina que o caminho do meio é a chave para a felicidade. Se a permissividade brasileira é ruim, a austeridade japonesa também o é. É sim possível ter uma vida muito boa no Japão. Só é mais difícil se você for japonês…

Placa suplicando aos visitantes de Aokihagara que estejam pensando em cometer suicídio, que não se matem e que procurem ajuda.

  1. Sentimento é algo mais subjetivo. Senso é algo mais racionalizado.